e juntar num só todo o que é fragmento
e enigma e horrível acaso.
E como suportaria eu ser homem, se o
homem não fosse também poeta e decifrador
de enigmas e redentor do acaso?»
F. Nietzsche
Enigma
«O velho eremita reuniu todos
os papéis e preparou
a mais bela festa para os filhos
cada um leria um velho escrito
e tentaria decifrar o grande enigma
começou por atribuir um número
a cada um não haveria confusão
excepto a inevitável confusão
de se saber o resultado do enigma
(...) Qual deles ousou descobrir?»
José Antunes Ribeiro
que é a arte?
Não me respondeis.
Dissimulai-vos, adormeceis, bem vejo.
Mas gritai, acordai, por Júpiter,
pai dos deuses!
ensinai-me de uma vez o que é a arte.»
Irene Lisboa
die meist verwachsen jäh im Unbegangenen aufhören.
Sie heiben Holzwege.
Jeder verläuft gesondert, aber im selben Wald. Oft scheint
es, als gleiche einer dem anderen. Doch es scheint nur so.
Holzmacher und Waldhüter kennen die Wege. Sie wissen, was es heibt, auf einem Holzweg zu sein».[1]
Heidegger
I.
Partimos do texto «Der Ursprung des Kunstwerkes», escrito por Heidegger em 1935/1936 no intuito de pensar, com o autor, a complexa problemática que gira em derredor da Arte, da obra, da origem e do enigma, ou por outras palavras, quisemos reflectir sobre a origem da obra de arte e o enigma que a arte é em si mesma.
Se Heidegger é o filósofo por nós eleito para apresentar e quiçá ilustrar estes pontos fundamentais de toda a compreensão onto-artística contemporânea, Van Gogh e as suas múltiplas versões de «Os Pares de Sapatos», a que Heidegger indiscriminadamente se refere sem a precisão adequada ‑ o comentário do filósofo dos caminhos que enigmaticamente não conduzem a parte alguma, é tão generalista que se pode aplicar a qualquer uma das obras realizadas pelo artista, sobre este tema, em períodos diferentes ‑ é o pintor escolhido, esse autor consagrado da “Grande Arte”, como meio de mostração do “pôr-em-obra da verdade”, qual tese central do pensamento heideggeriano que coloca a verdade como categoria estética fundamental, ao destruir, por um lado, o império fugaz do Belo inteligível, universal, pelo qual se todas as coisas são belas são-no apenas porque nele participam, ou então, porque este é uma propriedade do objecto, ou porque reside no sujeito que põe por si mesmo a beleza na coisa contemplada; e, por outro, ao destronar o reinado da emoção, da experiência-vivida (Erlebnis) como características fundamentais da criação e da contemplação estética.
A Arte e a obra no seu dar-se primordial mantém-se sempre envolvida no enigmático mistério que é próprio do dar-se do Ser no espaço vazio da tela na partitura sem notas do compositor musical, na pedra informe do escultor ou no papel em branco do poeta.
Por isso, movendo interiormente o texto em estudo e a reflexão heideggeriana sobre a arte, está a convicção de que uma interpretação metafísica da obra de arte, longe de a esclarecer na sua essência e origem, antes a perverte na sua constitutiva realidade. Correlato da nossa postura filosófica ocidental, este tipo de perspectivação metafísica da arte, que o autor, aliás, sem suficiente problematização, identifica com Estética, procuraria fazer da arte uma manifestação cultural sem mais, sempre reconduzível ao homem, procurando dilucidar-lhe uma criteriologia que afinal mais não é, para Heidegger, do que a aplicação de valores de civilização, de padrões de auto-avaliação importados do saber teórico, que em nada esclarecem a essencial radicação da obra de arte, de todo descurando a sua fundamentação na problemática ontológica, verdadeiro nexo dinâmico da reflexão heideggeriana.
A Estética procura então esclarecer as modalidades de patenteação e juízo do Belo, bem como a relação intrínseca e insuperável entre os termos autor ‑ obra de arte ‑ espectador, descentrando, deste modo, a reflexão da própria realidade da obra, e esquecendo a sua ancoração fundamental ao plano de fundo despoletador da existência da mesma. É assim que Heidegger afirma em «Einführung in die Metaphysique»: «Devemos dar ao termo "arte" e àquilo que ela quer designar um novo conteúdo, em encontrando primeiro uma posição fundamental originária quanto ao Ser»[2].
O modo de apresentação da nossa investigação poderá sugerir que a tematização heideggeriana, enquanto procura relevar a temática ontológica necessariamente subjacente à questão da obra de arte, é, neste intuito mesmo, uma reflexão sem falhas. Porém, adiante o veremos, a reflexão do filósofo sobre a essência da arte antes desemboca na impossibilidade de superar a mútua implicação metafísica. Permanecemos com o primado da questão ontológica, enquanto postura interpretativa, sendo a arte um dos horizontes de reflexão em que se repõe inevitavelmente a questão do homem e da sua proventualidade historial, esses dois termos que mais unidamente se imbricam.
Mesmo enquanto momento lateral da reflexão de Heidegger sobre o Ser, e apontando justamente para ela, o texto que aqui comentamos não deixa, por isso, de ser extraordinariamente significativo. Se a arte perde, inevitavelmente, horizonte hermenêutico próprio, a sua relevância no pensar heideggeriano não é por isso menor. Antes relevando a proximidade da questão da origem da arte e do seu carácter enigmático com a fonte originária e indizível do brotar do ser para a patenteação que se dá como a própria obra de arte, ao qewrein do homem, na sua postura a um tempo historial e de Dasein. Trata-se, pois, de relevar que enigma é esse que a arte acolhe.
II.
Se se procura descortinar a origem da obra de arte, a sua proveniência essencial, então o que indubitavelmente se persegue é o modo próprio de desdobramento do ser da obra enquanto ente (Seiend) que é.
Se a tríade obra de arte ‑ artista ‑ arte não torna a inquirição futurível, pois que inevitavelmente se recai em círculo vicioso, e nem a determinação da essência da arte é possível através da contemplação comparativa de distintas obras ou da dedução do que a arte seja a partir de conceitos superiores, inevitável é o procurar deslindar o que a obra de arte é na sua pura realidade. Trata-se, deste modo, de procurar destilar as propriedades da obra de arte em relação aos outros entes, pois o horizonte em que primariamente a obra nos surge é o das coisas que são, havendo que relevar se a obra é coisa (Ding), se diz outra coisa além da coisa que é, e é então alegoria, ou se, sendo coisa, a ela está reunido, adstrito, algo de outro, caso em que a podemos caracterizar como símbolo.
Relevando agora a dimensão de tudo o que é de algum modo ‘aparente’, e fazendo-o procurando conectar os termos obra-coisa, num percurso que não vamos aqui pormenorizar, cedo a reflexão heideggeriana estabelece que o que na obra de arte se joga não cabe na caracterização tradicional do conceito de coisa em sua tríplice dimensão: enquanto suporte de qualidades marcantes, como unidade de uma multiplicidade sensível, ou, ainda, nessa concepção mais usual de coisa como matéria informada. Se estas três determinações insultam a coisa mais do que a captam na sua ‘coisidade’, pois que não a apreendem na sua própria incontornabilidade, isto é, no facto de brotar originariamente para a patência a partir do ser, trata-se agora de enveredar por outro caminho e descortinar se o ser-coisa da obra pode apreender-se no ser do utensílio (Zeug), esse ente particularmente mais próximo do homem porquanto advém à patenteação por nossa própria produção. Porém, a essência do produto, não reside na sua produção, aspecto pelo qual se assemelharia inevitavelmente à obra de arte, mas na sua utilidade, conferida pela sua solidez intrínseca, a sua "fiabilidade" (Verlässlichkeit).
Ora, se a obra de arte por si própria tem suficiência, segue-se que a sua essência não é determinável a partir do ser do produto, sujeito à usura que lhe confere a submissão da sua essência às finalidades do homem. De facto: «A obra de arte, por esta presença bastando-se a ela-mesma que é o próprio da arte, assemelha-se mais à simples coisa repousando plenamente nesta espécie de gratuitidade que o seu brotar natural lhe confere. Todavia não classificamos as obras entre as simples coisas»[4].
Vemos assim que o que pareceria constituir o nexo interpretativo conducente à determinação da origem da obra de arte ‑ a abordagem da realidade ‘coisal’ da obra (das Dinghafte) ‑ é substituído por outra perspectivação tendente a relevar o que está em obra na obra, ou seja, esta deixa de ser questionada na sua espessura ôntica para ser apresentada como topoz indiciador de outra presença, como in-stância mostrante. Este salto, significará, por sua vez, a eleição de um novo nó problemático que colocará a obra de arte em directa confrontação, não já com o seu estatuto de coisa, mas com a dimensão fundamental da verdade.
Se já aqui se adivinha o abandono de uma “hermenêutica metafísica” e a abertura de outros espaços de perspectivação, conexos com a noção de verdade, mais tarde veremos como o abandono da inquirição pela onticidade da obra e, por consequência, da sua propriedade e id-entidade, levantará, no seio da perspectivação heideggeriana a algumas dificuldades. A resolução destas implicará, entre outros aspectos, a cessação da autonomia do sujeito e do processo de criação artísticos enquanto objectos de investigação, com o intento de pensar um novo conceito de arte que, livre de funções miméticas como expressivistas, e, por conseguinte, não mais adstrita ao real já dado como à “experiência-vivida” do sujeito (Erlebnis), se afirme antes como momento verdadeiramente instaurador e poético.
Mas o que é que se faz obra na obra? A verdade de todo o ente que é, coisa ou produto. O ser do que é chega pela obra e sobretudo por ela ao seu parecer: «A essência da arte seria pois: o pôr-se em obra da verdade do ente (Sich-ins-Werk-setzen des Wahreit des Seienden)»[6]. Esta assumpção da mostração da verdade pela obra de arte, surge na tematização heideggeriana segundo dois modelos interpretativos que podemos consignar nas duas díades: Mundo/Terra, clareira/retraimento. É, a um tempo, no enlaço e no hiato destes dois modelos que a concepção heideggeriana da arte ganha, na nossa perspectiva, a sua mais fecunda peculiaridade.
O que na obra se consigna e apresenta segundo a dicotomia Mundo/Terra está ainda na dimensão não‑veladora da verdade heideggeriana.
Mas, o que é a Terra? Heidegger naturalmente a reporta ao termo grego jusiz, essa força que eclode e brota, qual seio de que a um tempo tudo se abre à presença. Fusiz é a Terra protectora, o solo natal (Grund) que tudo mantém e alberga em si. E o Mundo? «Um mundo ordena-se em Mundo (Welt weltet)»[8]. O Mundo é o que na Terra o homem instala e propria, privilégio da estada humana no aberto do ente. São estas duas modalidades de tudo o que é que a obra acolhe em si na sua in-stância (Dastehen), no seu stare, no seu ter-se aí, instalada.
Poderíamos inquirir-nos, agora, pelo responsável de tal instalação da obra. Porém, o ‘sujeito’ instalador cedo se esvanece na tematização heideggeriana. A obra é sempre reportada à dimensão da mais pura impessoalidade, primando ineludivelmente o seu ser-obra e o que nela se patenteia enquanto presença mostrante: «Como pode a obra requerer uma tal instalação? Porque é ela mesma instalante no seu ser-obra. Que instala a obra enquanto obra? Quando a obra de arte em si mesma se põe, então abre-se um mundo, de que ela mantém para sempre o reino»[9].
É nesta interrogação que ganhamos consciência que a tematização heideggeriana não atinge ainda aqui o seu intento fundamental, antes requerendo uma perspectivação que adiante à dicotomia Mundo/Terra outra mais radical, a saber, a que atine à essência da própria verdade como desvelamento (Unverborgenheit).
Consignando em si o enlaço combativo destes dois termos, a obra faz advir em si a eclosão (Aufbruch) do ente no seu todo. «Mas como advém a verdade? Resposta: ela advém em alguns, raros, modos essenciais. Um dos modos nos quais a verdade se desdobra, é o ser-obra da obra»[11]. Indicia-se uma oposição suscitadora de um conflito ainda mais original do que o que retratámos à pouco.
III.
Sabemos que o Ser, para Heidegger, é essa possibilidade ilimitada e sem figura, força sempre excessiva e em provisão, a partir da qual, como um fundo, brotam todos os entes. O que seja a capacidade do ser em se ondular, de se patentear através de diferentes texturas e rugosidades, é o que é extremamente difícil de delimitar no seio do pensar heideggeriano, carente da inicial diferença que, no começo de tudo o que é, despoletaria o ente para a existência (ao modo como, por exemplo, em Aristóteles, o ente brota na jusiz a partir da confluência, no mesmo, de ser e entidade, ulh e morjh). Assim, é a capacidade auto-projectiva do Ser, a sua capacidade de jectar para a patenteação tudo o que é, e o homem de modo mais insigne, que permanece sobretudo enigmático. Em suma, é o ‘aparecer’ do lugar de todos os mistérios.
Em vários textos[12] Heidegger apresenta dois sentidos do aparecer que diferem entre si a partir da essência do espaço. Num primeiro caso o trazer-se do ente-à-stância-na-recolecção que abre o espaço, conquista-o e cria-o no seu re-es-tando-aí, no seu constituir-se desse modo, efectuando, nisso, o seu recurso máximo para brotar para a patência sem ser ele mesmo cópia de algo já existente. Também, num segundo sentido, o aparecer separar-se-ia apenas sobre um espaço já constituído, sendo visado por um olhar que se move nas dimensões, já solidamente estabelecidas, desse espaço.
A aportação destas duas concepções de "aparecer" para um estudo sobre a concepção heideggeriana da arte, parece-nos fundamental, tanto mais quando se trata de apresentar a obra como modo de patenteação da verdade. Parece, assim, que a adveniência da verdade, só teria sentido na primeira acepção apontada do aparecer, sendo, deste modo, concomitante originária ao brotar do ente. Assim sendo, jamais poderia ter conexão alguma com a postura da obra de arte já que, ao que parece, esta, na sua constituição e instalação, radicaria na segunda concepção de "aparecer" surgindo num espaço já constituído, e em que a dimensão do seu viso seria manifestamente mais relevante que a sua própria efectividade.
Pensar a instituição da verdade na obra, tendo como núcleo de reflexão, a um tempo, a instalação da obra no espaço do mundo e o brotar de um ente, desbravando e constituindo o seu próprio lugar e espaço é o que Heidegger levanta como dificuldade no "Suplemento" a «Der Ursprung des Kunstwerkes», escrito em 1960.
IV.
Assim, consideremos o ente X: "um par de sapatos de camponês" e os quadros de Van Gogh sobre esta temática. Como podem estes últimos mostrar a verdade do ente em questão se, de acordo com o que acima apresentámos sobre o aparecer e o espaço, os dois se colocam na mais radical heterogeneidade? A verdade do referido ente X está no topoz do seu brotar, isto é, no nó que co-lige o não‑ainda‑eclodido e o aberto no qual vai ter-se o ente.
O que acontece é, de facto, algo de manifestamente diverso: a estância da obra, redutível, para Heidegger, ao que nela está em obra e, portanto, ao seu ‘conteúdo’, cruza apofanticamente o (brotar do) ente, dando-o a ver, mostrando a sua verdade. A obra é ao modo do logoz apofântico. A sua criação é uma poihsiz, um fazer que mostra, um "tirar para a luz" ou extrair para a patenteação, mostrando o que é fora do retraimento: «Porque pertence à essência da verdade o instituir-se no ente para, apenas deste modo devir verdade, há na essência da verdade esta atracção para a obra enquanto possibilidade insigne para a verdade de ter ela-mesma ser no meio do ente»[14].
Se a verdade se dá em ente, e se mostra na obra, não pode ser desprezada a onticidade desta última: «A verdade não advém senão se se institui ela-mesma no combate e no espaço de jogo que se abrem por ela. (...) é a abertura do ente , ela apenas, que torna possível um ‘qualquer parte’ e um ‘lugar cheio de ente’. Clareira de abertura e instituição no aberto pertencem-se reciprocamente»[15]. Ineludivelmente, a obra não se limita a instalar-se, de pôr-se no seio de um Mundo, qual oferenda ao aberto do Ser.
A obra de arte consigna em si dúplice concepção do aparecer e do espaço heideggerianos: instalando-se no aberto e irradiando a sua luminosidade para o mundo, acolhe em si a verdade do ente, porquanto o conflito inerente à instância desta nela está em ergon. Nunca o que constitui o mistério na díade ser‑ente, isto é: alhqeia, des-velamento, está tão perto da sua mais efectiva e espontânea patenteação como obra de arte.
É, pensamos, na confluência dos termos da diferença inerente à essência da verdade que nos parece ser possível afirmar a necessidade de conhecer a tematização heideggeriana da obra de arte com outra nuance: é na confluência do instalar-se da obra no espaço com esse inefável dar-se, na obra e da verdade do ente que brota, na nossa perspectiva, a arte como momento fulcral de instauração.
Ora, na medida em que é ente e colhe em si, mostrando, clareira e retraimento que a obra está no topoz da diferença ontológica: de facto, se neste ponto fulcral do seu pensar, Heidegger se questiona sobre a diferença fundamental entre ser e ente, e sobre a efectividade do esquecimento desta questão como motivo despoletador da postura metafísica, como não revelar a assumpção desta temática para a concepção de obra de arte, esse ente que na sua in-stância mesma sincretiza esses dois elementos : ôntico e ontológico? Se o acto criador é a um tempo uma qesiz ‑ o deixar desdobrar-se na sua fulguração e na sua presença a própria obra, e se esta é o lugar em que qualquer coisa é tirada ao ser para ter mais ser no seio do ente, a saber, a verdade, então, o dar-se da verdade na obra, conecta indubitavelmente uma hermenêutica da arte com a problemática moral do pensamento heideggeriano: «Se meditarmos em que medida ‘verdade’, como eclosão do ente, não quer dizer nada de diferente de presença do ente enquanto tal, isto é ser, então falar da instituição espontânea da verdade, isto é, do ser, no ente, este falar toca a posição em questão da diferença ontológica»[16].
Há que relevar esta dupla compreensão da obra de arte. Perspectivada sob o ponto de vista de tudo o que é de algum modo já-presente no seio da dimensão não velada da verdade e, portanto, mostrando a verdade de todo o ente na sua própria facticidade no seio da dicotomia Mundo/Terra, a obra de arte assume-se como instância mostrante do ser da coisa e do utensílio, e o conceito de instalação surge-nos como mais relevante. Porém, apenas a perspectivação da arte como instauração, numa abordagem que releve o próprio nó de todo o eclodir ‑ a confluência de clareira e re-traimento na abertura de todo o “brotar ente”, nos fornece uma mostração da verdade própria da obra, porquanto a releva nisso de ser a um tempo instância mostrante e ente que se instaura no topoz da sua própria abertura. A instauração da obra é, nesta ordem de ideias, concomitantemente o momento inicial de todo o ente, e, como tal o seu surgir é um acontecimento verdadeiramente inaugural, sendo a obra pensada a partir dessa fulguração indizível que é o facto da verdade se dar, se pôr em ergon, na obra de arte mesma.
V.
Estamos, agora, em condições de compreender o esvanecimento das categorias de autor e criação no seio da tematização heideggeriana. Numa concepção da obra em que é a verdade mesma que se atrai para o espaço télico, na pintura, para a sonoridade, na música, ou para a palavra, na poesia, o processo como o sujeito realizador de tal assumpção, que entifica o próprio querer dar-se da verdade, surge como que irrelevante mediador, descaracterizado enquanto instância produtora e apenas como simples, mas evanescente, meio para o surgir da obra.
É a essência mesma da obra que torna possível o processo como o sujeito da criação artística, embora estes sejam ‘nadificados’ na sua instância e essência própria, no intuito de relevar o modo como a obra surge, sem mediação, num brotar depurado que desafia toda a compreensão. Não é de facto no processo de criação que o elemento humano ganha a sua relevância na tematização heideggeriana.
Na arte o que releva de modo mais insigne, não é a produção de um ente mas o facto incontornável de que a verdade se dá em acto. Nisto o criador é tão só um poro, uma passagem, em que a própria individualidade e entidade do sujeito, porque não é o que na obra se trata de expressar, recai na própria aporia, isto é, a obra não se abre ao ser do homem, mas ao ser da verdade. A arte é uma instauração antropologicamente inexpressiva no que concerne à criação da obra.
Se, assentámo-lo já, na obra se re-colhem umbilicalmente ente e verdade, trata-se agora de perguntar pela especificidade da arte enquanto modo de mostração daqueles relativamente a outras modalidades de patenteação, consignadas no pensar heideggeriano. De facto, em que consiste a propriedade da arte? O que faz a originalidade da obra de arte? Heidegger afirma: «A instituição da verdade na obra, é a produção de um ente que não era de modo nenhum antes, e não será mais a seguir. A produção instala este ente no aberto de tal maneira que é precisamente aqui o que é a produzir que aclara a abertura da obra na qual ele advém. Aí onde a produção traz expressamente a abertura do ente ‑ a verdade ‑ , aquilo que é produzido é uma obra. Uma tal produção, nós chamamos-lhe criação (das Schaffen)»[19].
A realidade própria da obra é ser um ente que, acolhendo em si a verdade na sua estatura, tem toda a sua positividade e pregnância no facto de ser tão o ente que é. Criar é produzir um ente que não tinha ser, e não terá nunca mais ser do que o que detém no momento em que vem à clareira do aberto. Se a verdade ganha mais ser no seio do ente, a obra afirma a sua especificidade e id-entidade no facto de ser o ente ‘insólito’ e enigmático, que acolhe em si a dádiva da verdade mostrando-se através dele.
Face ao que está em obra na obra tudo o que é ente sem ser mais do que ente cai na familiaridade que nada desafia, no habitual que não alude à sua própria origem. A obra tem, pois uma função "tauma-tica", ela é um apelo para o maximamente inicial, sendo o seu surgir como que o concomitante do genuinamente original. "Ser-obra", mais do que ‘verdade tendo ser no seio do ente’, eis o que é o mais espantoso: «O choque que é o pôr em obra da verdade, faz saltar as portas da e-normidade e no mesmo golpe rebate o familiar, ou tudo aquilo que se crê tal.
Mas a demanda heideggeriana não se queda numa apologia da obra como dádiva, relevando também questões de outro cariz, conexas com a problemática radical da questão ontológica. Temos pois a assumpção da pergunta pelo fundamento da obra, não numa perspectiva tendente a encontrar-lhe o porquê e a razão, relevando antes o horizonte em que, no surgir da obra, se coligem, no mesmo traço caracterizador, fundo (Grund) e fundação, a própria obra de arte aparecendo como acontecimento verdadeiramente auto-fundador: a obra é expressão de um salto original que a traz do nada ao ser.
A fundação é, a um tempo, a circunscrição de um espaço de instauração, do assento num fundo, e os próprios pilares que enraízam o ente ao seu fundo de ser. Enquanto instauradora de um espaço que propria a assumpção da verdade no ente, a obra é simultaneamente instância fundante e fundação: ela traz a verdade ao ente e constitui o lastro, o estame que a radica ao seu fundo de ser.
Nisto, a arte é quase o paradoxo, como se promovesse a dádiva da verdade sem a oferecer num ente, dando a vê-la como sendo o seu próprio fundo: «A arte faz brotar a verdade. De um só salto que se adianta a arte faz surgir, na obra, enquanto salvaguarda instauradora, a verdade do ente. Fazer surgir qualquer coisa com um salto que precede (etwaserspringen), trazê-la ao ser a partir da proveniência essencial e num salto instaurador, eis aquilo que nos assinala a palavra origem»[21].
O inicial é aquilo que, estando no princípio e provocando-o não deixa de nos apelar e fascinar, porquanto continua per-passando tudo o que é. O inicial é o in-habitual de aquilo que sempre prevalece suscitando o devir de todo o ente familiar e o anima. A obra, instauração do inicial, promove a adveniência da origem, aquilo que nos con-voca e pro-voca a resposta e a co-respondência. A obra de arte faz um apelo, des-ilude o habitual e o familiar como absolutos, mostrando que não são eles que detêm mais ser: «Aquilo que nos parece habitual não é verdadeiramente senão o habitual de um longo hábito que esqueceu o in-habitual de onde brotou. Esse in‑habitual, no entanto, surpreendeu um dia o homem em estranheza, e empenhou o pensamento no seu primeiro espanto»[22].
VI.
A obra de arte é, nesta configuração, o ente da existência metafísica que clama de novo resposta ao espanto originário. É neste sentido que Heidegger pode afirmar a sua concepção da arte como origem, radicando de modo, insigne, pelo qual a verdade tem acesso ao manifesto e à história, a essência mesma da arte. Coetânea desta adveniência da verdade, a arte tem também, porém não só ela, essa dimensão fundamental segundo a qual é, eminentemente um ‘mostrante’, um poema (Dichtung). Capacitada para se ‘jectar’ na patenteação, no manifesto, ela é pro-jecto de clareira, despoletadora da própria abertura em que o ente se dá na sua verdade. Nisso de fazer vir ao aberto o ente enquanto ente des-velado, a arte é Poesia, um fazer mostrante que dilucida o modo como o ser possibilita um "jectar" para o manifesto, de acordo com o qual o aberto da verdade se destina a ter estância no ente.
Porém, e a arte é Poesia e, nisso, mostra, a quem o faz? Qual o ente que se demanda pelo porquê de tudo assim ser, e acolhe essa mostração como detendo um sentido? Heidegger diz-nos: «A essência da arte, é o Poema. A essência do Poema, é a instauração da verdade. Esta instauração, nós tomamo-la aqui num triplo sentido: como dom, como fundação e como inicial»[23]. De facto, conquanto nos tenhamos movido numa perspectivação ontológica, o que até agora foi exposto parece suficiente, porém, a própria assumpção da arte como Poesia, como "fazer mostrante", cedo mostra a necessidade de acolher, no questionamento heideggeriano sobre a arte, a temática antropológica, e a condução da abordagem ontológica a essoutra, não menos fundamental, da postura metafísica do "Da-sein" e da inquirição deste sobre o sentido do ser.
É que, numa tematização da arte a partir dos conceitos de "instauração" e "poesia" a noção de ‘ criação-adveniência’ da obra, relevada tão somente na sua dimensão ontológica é manifestamente insuficiente. Há, pois, que relevar outra interpretação que sobreleve a figura do homem e o seu próprio estar metafísico: «No entanto, toda a instauração não é real senão na salvaguarda. Assim, a cada modo de instauração, corresponde um modo de salvaguardar»[24].
Se por um lado temos que é iniludível, para o filósofo, o facto de que o homem, enquanto artista, não explica a obra na sua radicalidade, porquanto a iniciativa do ‘fazer-obra’ pertence à verdade, temos, por outro lado, que a própria assumpção desta última como des-velamento só se torna compreensível numa postura em que há Dasein, esse ente para quem a verdade faz sentido.
Se, na origem, o humano se desvanece, a própria instauração da obra no aberto não pode separar-se desse ente que, perante a sua instância, sente o "choque" e a "percussão" que dela emana. Instauração no seio do aberto e relevância da questão ontológica, sem dúvida . Porém, se ser obra é ser um ente mostrante, a relevância da sua dimensão poética só se torna possível se, aduzido ao momento instaurador, se coloca esse outro em que o Dasein, enquanto ente que mais insignemente acolhe o ser, se inquire pelo seu sentido, é iniludível que a arte na sua essência, na sua origem, é instauração da verdade.
VII.
Mas em que consiste a Salvaguarda, esse segundo elemento essencial da arte? Podemos dizer que por tal conceito se traduz o trabalho humano de deixar a obra ser o que em verdade é. Guardar a obra é o saber permanecer na verdade do ente que advém pela obra. Podemos de facto dizer que está no poder da obra trazer ao aberto do ser a verdade do ente, mas não está no seu poder intrínseco manter-se no seu próprio elemento. Instalando-se no Mundo de cujos entes instaura a verdade, a obra tem a sua ambiência particular, ela própria o seu mundo, e fá-lo justamente na medida em que irradia para ele, como se, paralelizando com a atracção da verdade para a obra, houvesse um querer segundo, pelo qual a obra se posiciona como o mostrante do segmento do mundo em que se instaura, ganhando no seio dele a sua verdade própria. ‘Guardar a obra’ ‑ eis a postura do Dasein pela qual ele pressente que, inerente ao instituir-se da obra num mundo, e ao abrir-se e ordenar-se de um mundo na obra, há, também, o mundo próprio da obra, qual periferia em que está no seu elemento próprio.
Tudo se passa como se houvesse, subjacente à noção de salvaguarda, uma ética do homem relativamente ao ser-obra, mediante a qual promover o desgarramento da obra ao seu mundo não é outra coisa senão insultá-la, pois que não se trata, aí, senão de abandoná-la à sua própria solidão de ser uma obra sem mundo ‑ isto é, retirá-la do fundo em que foi deposta, fundo que é a sua própria proveniência historial, lugar em que a obra brotou para a existência manifesta. Caricaturando: depor a Vénus de Milo nos átrios da Tate Gallery, é retirá-la do fundo grego em que surgiu para instalá-la num lugar que, muito distante do seu brotar, está todavia consignado no espaço metafísico ocidental, que a aurora filosófica grega despoletou, estando portanto no seio de uma mesma proveniência historial.
Verdadeiro insulto e traição à obra, seria antes para Heidegger o facto, bem actual, de exportar telas de Cézanne para o Japão, não porque haja aí apenas um ‘abismo espacial’ mas porque, de facto, um japonês não pode ‘sentir’ «La Montagne de Sainte-Victoire» como a sente um europeu que, enquanto Dasein ocidental, detém a mesma proveniência historial que a mencionada tela e pode ‘sentir’, por isso, a nostalgia do in-habitual que ela anuncia. Ao homem desgarrado da postura metafísica ocidental será impossível ‘guardar um hino de Hölderlin como uma sinfonia de Beethoven, e isto porque, não se tendo na verdade que tais obras desdobram, a instituem no espaço próprio de tais mundividências, e como tal, desenraízam de tal modo a obra que esta não pode mostrar o verdadeiro inicial e in-habitual de onde brotou. Desenraizar a obra do seu mundo, eis em que consiste roubar-lhe a poesia: «Enquanto posição em obra da verdade, a arte é Poema. E é não apenas a criação, mas também a guarda da obra que é no seu modo próprio, poemática; pois uma obra não permanece real enquanto obra senão se nos demitirmos nós mesmos da nossa banalidade ordinária e entrarmos naquilo que a obra abriu, para assim conduzir a nossa essência a ter-se na verdade do ente»[26].
Manifesta é, nesta ordem de ideias, a assumpção do homem enquanto ente que, no fulgor da obra, se transporta para uma nova ordem de todo distinta da que configura a sua existência quotidiana. A obra é também uma via, um poro, no qual o homem se en-via para a co-respondência de aquilo que a própria obra abriu, a saber, a mesma fonte matricial onde se re-conhecem a origem da obra e a essência do homem. A relevância da obra como mostração poética ganha a sua concretude no conluio, em uma mesma matriz, do homem e da obra enquanto mostração da verdade do ente. Só uma tal co-respondência num momento originário torna possível ao Dasein, o re-conhecimento de aquilo que, na obra, o concerne a si e ao sentido que confere ao seu existir historial: «O projecto verdadeiramente poemático é a abertura de aquilo em que o Dasein está, enquanto historial, já arriscado»[27].
Irradiação mostrante de um mundo que desdobra a sua ordem a partir da relação do Dasein ao aberto do Ser, mas também ente capaz de possibilitar o total desgarramento do homem em relação ao que lhe é familiar e habitual, transportando-o para um outro aí que não aquele em que tem o costume de estar, a saber, para o topoz originário, em que ele mesmo devém ser-aí, eis como podemos caracterizar a poética da obra de arte. A postura da obra mostra ao Dasein que o verdadeiro enigma se esconde por detrás do familiar que o circum-domina. Apenas o homem é capaz desse saber segundo o qual lhe é manifesto que não deve ser esse habitual a per-dominá-lo, detendo também esse querer que o torna capaz de ser fiel guarda da obra nisso de, perante ela, ser capaz de se libertar dos empreendimentos quotidianos no seio do ente para se abandonar à abertura do ser: «O saber que permanece um querer, e o querer que sabe permanecer um saber, é o comprometimento ek-stático do homem existindo no aberto do ser»[28]. Manifestamente, a obra, por sua imanência pura, existe no manifesto do ser mostrando-o, porém, ente que é, mas sem capacidade de se auto-questionar, ela não detém o poder de se comprometer na abertura do Ser, inquirindo pelo seu sentir. Assim, a obra de arte dá-se ao único ente ao qual não é indiferente o ser que detém e é, como tal, capaz de levar no seio do aberto uma ek-sistência autêntica: o homem.
Decorrendo do que temos vindo a expor, é manifesto que a tematização heideggeriana não acolhe a possibilidade do que poderíamos chamar uma ‘hermenêutica criativa’, privilegiante de um paqoz estético. O choque que provoca a existência mesma da obra não é desencadeado por um viso desta que, pela sua força, provocaria prazer ou outra qualquer emoção. Não é, de facto, aí, que reside para Heidegger, a verdade da experiência estética, sendo esta negada se assumida numa dimensão que exclusivamente a reconduza à aisqhsiz. Todavia, parece-nos, que se não é dessa aproximação sensível à obra que provém o poder desgarrante e ‘qauma-tico’ desta, não deixa o filósofo de conceber uma certa ‘disponibilidade receptiva’ que poderíamos assemelhar a um acto de escuta, numa ressonância que aproxima a poética da obra a essa outra, de todas a mais mostrante, residente no poder nominativo da palavra. A postura do Dasein perante a obra ‑ e o combate que se trava nela entre clareira e retraimento, é um estar co-respondendo ao que na obra silenciosamente se diz, não porque a obra ‘fale’, mas porque o homem incontornavelmente lhe acolhe o apelo, apelo que não o do ente-obra mesmo, mas do que nele se oferece: o brotar longínquo do ente que a obra de arte dá a ver.
Detentor do poder da palavra, esse meio conivente do ser de cada ente, o homem é perante a obra desenraizado da marca quotidiana do ente, para, numa espécie de nostalgia, sentir a dor que lhe provoca a proximidade desse longínquo: o ser que o ser-obra enquanto tal lhe revela. Querer e saber, eis as características do homem enquanto ente disponível para escuta da obra enquanto instância em que o ser apela: «Querer, é com toda a sobriedade o pôr em liberdade que possibilita ir para lá de si mesmo em existindo e em se expondo à abertura do ente tal como esta se manifesta na obra. (...) A salvaguarda da obra é, enquanto saber, a calma e lúcida instância na e-normidade da verdade advindo na obra»[29].
VIII.
A necessidade de tematizar numa mesma conivência uma ontologia da obra de arte e a sua "significação hermenêutica" conduziu-nos, neste nosso percurso, à dilucidação da questão da instauração poética da verdade e do trabalho humano de salvaguarda, enquanto momentos característicos da concepção heideggeriana da obra de arte. O facto, incontornável no pensamento do filósofo, de que o Ser é assignação e direcção ao homem na mesma medida em que o homem ele próprio é um ‘projecto’ do Ser e o seu mais inacabado dos poemas, faz-nos relevar o coligimento da tematização ontológica e antropológica na concepção da obra de arte na sua mesmesura, com essa outra que atine à salvaguarda da mesma pelo "Da-sein".
Assim, a pergunta que demanda: a tematização heideggeriana da arte, tem como nexo dinâmico o homem ou o Ser? terá de ter resposta algo dúbia e inexplícita, no seio do próprio texto de Heidegger: se respondemos a favor do homem, teremos que a concepção do filósofo não poderá descurar a metafísica, se bem que atentando também ao originário de onde esta brota enquanto postura historial da nossa ek-sistência ocidental; se nos decidirmos exclusivamente pelo Ser então a determinação da arte redundará inevitavelmente na questão fulcral da ontologia: o que é o Ser? e enredar-se-á nela a ponto de se tornar aporética, porquanto, descurando o homem, e a metafísica em que este habita, perguntar-se-á: como explicar o processo historial de salvaguarda da arte, sem um Dasein que o cumpra e explicite?
O termo "historial", relevado por nós a propósito desta dúplice possibilidade, parece-nos fundamental, fazendo brotar uma questão necessariamente subsequente: que relação entre verdade e dimensão historial? Ou seja: «O que resta é a questão de saber se a arte é ainda, ou se não o é mais, uma maneira essencial e necessária de advento da verdade que decida do nosso Dasein historial»[30]. O que no questionar de Heidegger nos parece mais aporético, e justamente na proporção em que é uma temática fulcral, reside na dificuldade em explicitar de que modo o homem enquanto ente historial que, como tal, salvaguarda, pode estar também sempre perto da fonte, isto é, da matriz grega do despoletar possibilitador da metafísica enquanto postura indagante.
Trata-se de inquirir os meios pelos quais se viabiliza a conciliação da historicidade da Arte com uma concepção que a tematiza em concomitância com a originária jusiz, enquanto predominância que advém ao manifesto através do conflito entre Ser e ente, isto é, pela matriz grega da verdade como alhqeia, des-velamento, num regredir ao momento originário que permanece per-passando tudo o que é e devém, relevando aí, a própria postura metafísica. Qual a temporalidade que revém no ser estético? Como a conciliar com a atemporalidade do que está em obra na obra? Trata-se de relevar qual a relação possível entre a intemporalidade da verdade dando-se na obra e a historicidade da salvaguarda: «A arte é então: a salvaguarda criando a verdade na obra. A arte é pois um devir e um advir da verdade»[31].
Não é um facto que, concebendo uma verdade que devém pela sua própria salvaguarda, há uma imbricação necessária, porém inexplícita, entre as tematizações ontológica e metafísica no que concerne a tal noção? Não é precisamente o acolher metafísico da Arte que se quer negar, superando-o numa concepção da arte que a reconduz ao originário longínquo que despoleta toda a herança metafísica, mas que porém não é só e nem primordialmente metafísico na sua origem? Não é de certo modo paradoxal afirmar: «Mesmo o esquecimento no qual pode soçobrar uma obra não é nada: ele é ele-mesmo ainda uma salvaguarda»[32]? Como, este poder conceber uma salvaguarda esquecida no próprio esquecimento do Ser que é já a metafísica?
IX.
Estas são algumas das dificuldades decorrentes da problemática trabalhada, a que aditamos agora, e em jeito de conclusão, uma outra que atine, assim o pensamos, à própria indefinição do que seja a Arte, na própria espessura individual do termo. Uma vem concedido que a obra de arte, na sua pregnância é o pôr-em-obra a verdade, e que esta designa o não-retraimento do Ser, não sabemos também que, no seio do pensamento heideggeriano, a verdade se dá também por outras vias? «Todo o ensaio sobre a Origem da obra de arte se move conscientemente, e no entanto sem o dizer, sobre o caminho da questão da essência do ser.
Sem dúvida que Heidegger nos diz ainda que «a arte é ela mesma, na sua essência, uma origem, e nada de outro: um modo insigne de acesso da verdade ao ser, isto é, à História»[35]. Porém, perguntamos, se toda a verdade que se des-vela para a História tem a Arte como origem, se a arte esgota, por isso, todas as modalidades de patenteação da verdade?
Por excesso ou por defeito, o conceito de Arte descaracteriza-se, perdendo a sua pre-valência como mostração da verdade pensada a partir de uma poética instauradora, na medida em que não é só por esta que a verdade se manifesta, perdendo igualmente a sua especificidade se pensada a partir do conceito de origem. Afirma o filósofo no Posfácio: «As considerações precedentes concernem o enigma da arte; o enigma que a arte é ela mesma»[36].
Notas:
[1] «Bosque soa a um antigo nome para floresta. No bosque há caminhos, a maior parte das vezes emaranhados matagais que terminam repentinamente. Cada um explora o seu caminho, mas na mesma floresta. Frequentemente, parece que um é análogo ao outro. Mas não é senão uma aparência.
Lenhadores e silvícolas conhecem-se nos caminhos. Sabem o que significa estar nos caminhos da floresta». (M. Heidegger, «Holzwege», in Gesamtausgabe, I. Abteilung: Veröffentlichte Schriften 1914 - 1970, Band 5, p. 2 (traduzido do original por Isabel Rosete).
[2] M. Heidegger, in Einführung in die Metaphysique, p. 40.
[3] «As considerações precedentes concernem ao enigma da arte, o enigma que a arte em si mesma é. Longe de nós a pretensão de resolver tal enigma. A tarefa consiste em ver o enigma». (M. Heidegger, «Der Ursprung des Kunstwerkes» ‑ Nachwort, in Holzwege, p. 66).
[4] M. Heidegger, «Der Ursprung des Kunstwerkes», in Holzwege , p. 28.
[5] Idem, p. 36.
[6] Idem, p. 37.
[7] Idem, pp. 49-50.
[8] Idem, p. 47.
[9] Idem, p. 47.
[10] Idem, p. 54.
[11] Idem, p. 61.
[12] Cf. por exemplo Einführung in die Metaphysique, p. 187.
[13] Idem, p. 41.
[14] Idem, p. 69.
[15] Idem, pp. 68-69.
[16] Idem, p. 97.
[17] Idem, p. 98.
[18] Idem, p. 42.
[19] Idem, pp. 69-70.
[20] Idem, p. 85.
[21] Idem, p. 88.
[22] Idem, p. 22.
[23] Idem, p. 84.
[24] Idem, p. 84.
[25] Idem, p. 73.
[26] Idem, p. 84.
[27] Idem, p. 85.
[28] Idem, p. 75.
[29] Idem, p.75.
[30] Idem, p. 91.
[31] Idem, p.81.
[32] Idem, p. 75.
[33] Idem, p. 97.
[34] M. Heidegger, "L’Art et l’Espace", in «Questions IV», p. 105.
[35] Idem, p. 88.
[36] Idem, p. 88.
2 comentários:
Se a Doutora não se importasse, gostava que passasse no meu blog 'Uma Janela Aberta' e deixasse o seu comentário sobre alguns dos poemas que escrevo, pois pelo que li percebi que é entendida no assunto e preciso verdadeiramente de uma pessoa que entenda e não que diga só um simples 'está giro'.
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Porque a Arte é Poesia por definição :)
Não,
O artista não é um imitador!
E a Arte não é mimésis,
Cópia pura e simples da realidade.
A Arte dá-se no desflorar da Verdade,
No brilho da sua adveniência,
Que é o Belo,
Na plena libertação dos sentidos
E do sentir.
É matéria e forma,
Talento e génio,
O dizível e o indizível,
O latente e o manifesto,
O in-habitual…
Uma outra mundividência,
Que nos aliena do quotidiano,
Uma dádiva epifânica,
Que aí se mostra
E sempre nos fala
Do íntimo
Das coisas-mesmas,
Sempre tão próximas,
Sempre tão distantes!
Isabel Rosete
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