quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

PLANO DE TRABALHO, MESTRADO, «ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE»


UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

MESTRADO

«ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE»

PLANO DE TRABALHO PARA A DISSERTAÇÃO DE MESTRADO (ANTE-PROJECTO)


«DER URSPRUNG DES KUNSTWERKES»

Esquema interpretativo (a partir do Posfácio e do Suplemento)



ORIENTAÇÃO

DOCENTE: Professora Doutora Mafalda Blanc

ANO LECTIVO: 1996/1997

SEMESTRE: Iº

MESTRANDA: Maria Isabel Rosete

Março de 1997



TÍTULO

A ORIGEM DA OBRA DE ARTE EM HEIDEGGER: O JOGO DO SER E DA VERDADE E O ESPAÇO DE COMBATE ENTRE MUNDO E TERRA


INTRODUÇÃO

¨ 1. - Apresentação do tema: Equação do problema e percurso de investigação

¨ 2. - Objectivos

¨ 3. - Estrutura

PARTE I - ALGUNS PONTOS NÃO FINAIS

¨ 1. - Teses

¨ 2. - Questões

PARTE II - AS QUESTÕES ESSENCIAIS DO POSFÁCIO
A DES-CONSTRUÇÃO DA ESTÉTICA E A MORTE DA GRANDE ARTE: O VEREDICTO DE HEGEL.

I ª Questão: - A arte como enigma e o seu visionamento essencial: Sob o signo da questão da origem

¨ 1. - Os caminhos: o significado de estar nos Holzwege

¨ 2. - A origem da obra de arte e a arte como enigma
2. 1. - A origem como essência: o “retorno às coisas” e à sua pro-veniência essencial
2. 2. - As metáforas: A escuta e o olhar
2. 3. - A “trindade” do enigma: a arte, a obra e o artista e a instauração do círculo aporético do pensar artístico heideggeriano

¨ 3. - A arte e a “Questão do Ser”
3. 1. - A “Seinsfrage” e a fundamentação ontológica da arte

¨ 4. - O sentido do ser na obra e o significado do termo “Bilde”: o ser-quadro e o ser‑imagem
4. 1. - A ambiguidade significante do termo Bilde: contributos para a compreensão do enigma da arte

IIº Questão ‑ A origem da obra de arte e o problema da instauração da verdade: em torno da interpretação do quadro de Van Gogh “Um Par de Sapatos”

1. - A essência da Verdade como determinação da questão que demanda pela essência da arte

¨ 2. - A essência da Arte como o aparecer da essência da Verdade

¨ 3. - Da arte como imitação à arte como revelação da verdade

¨ 4. - “Na obra o acontecimento (Ereignis) da verdade está em obra”/”No quadro de Van Gogh acontece a verdade”
4. 1. - A arte como Ereignis e a determinação do “Sentido do Ser”
4. 2. - O Ereignis e o pensamento do dom

¨ 5. - A obra de arte como abertura da eclosão da verdade do ente: sobre o significado da expressão “pôr-em-obra-da-verdade”
5. 1. - A ambiguidade da expressão “pôr-em-obra-da-verdade”: a verdade do ponto de vista do sujeito e a verdade do ponto de vista do objecto
5. 2. - O “pôr-se-em-obra-da-verdade” e o “pôr-em-obra-da-verdade”: a “criação” e a salvaguarda

¨ 6. - O “Par de Sapatos” de Camponês e a revelação da verdade do “ser-apetrecho” do apetrecho e do carácter instrumental do apetrecho na e pela obra de arte
6. 1. - O “ser-produto” do produto e o “ser-obra” da obra
6. 2. - Produto e obra: criação, recepção e salvaguarda
6. 3. - A natureza ex-tática da arte e a transcendência do quotidiano: a pertença da obra ao domínio do in-habitual e do extraordinário
6. 3. 1. - O historial e o ex-tático na obra de arte: reunião ou incompatibilidade ?
6. 4. - Variações interpretativas de “Um Par de Sapatos” e de “Meio-Dia: Sesta”: Heidegger e Van Gogh

¨ 7. - A revelação da verdade no quadro como mostração do ente na sua totalidade

¨ 8. - O ente na sua totalidade como conflito recíproco entre Mundo e Terra: o caminho para o des-velamento do Ser no “combate da verdade”

¨ 9. - O “ser-obra da obra” como combate entre Mundo e Terra
9. 1. - O combate entre Mundo/Terra e o jogo da ocultação/desvelamento
9. 2. - O combate entre Mundo e Terra na obra e a questão da Geviert
9. 3. - A Terra e o pensamento do dom
9. 4. - O Mundo como domínio da realização cultural do homem
9. 5. - Variações interpretativas do combate Mundo/Terra: o retorno a Nietzsche e a dialéctica do apolíneo e do dionisíaco.

¨ 10. - A obra de arte como re-união conciliável dos contrários: o exemplo de Antígona
10. 1. - Habitação e obra de arte


IIIª Questão: Os modos de ser da verdade: o inseparável jogo dos opostos

1. - Verdade e não-verdade.
1. 1. - Sobre o sentido das expressões: “estabelecimento da verdade” e “deixar acontecer da adveniência da verdade”
1. 2. - O “pôr”, o “dispor” e o “estatuir” da verdade: o “fixar” da verdade e o “deixar acontecer” da verdade
1. 3. - A “instituição da verdade do ente” e a questão de “diferença ontológica”

¨ 2. - Verdade, clareira e ocultação
2. 1. - Abertura e ocultação
2. 2. - Ocultação e dissimulção

¨ 3. - Verdade e des-ocultação
3. 1. - A pro-dução criadora e a des-ocultação
3. 2. - O sentido da poihsiz
3. 3. - Pro-dução e criação
3. 4. - A criação como o “pôr-em-obra da verdade”: a determinação de essência da criação pela essência da verdade
3. 5. - O ser da verdade na obra

¨ 4. - O des-velamento e o velamento: a verdade como alhteia
4.1 - O aparecer e o mostrar
4.2 - O coberto e o des-coberto

IVª Questão: A verdade, o belo e a obra

¨ 1. - A beleza como luz do aparecer ordenado da verdade

¨ 2. - A beleza como modo de eclosão da verdade

¨ 3. - A beleza como verdade da imagem

¨ 4. - “A beleza do belo é o puro deixar aparecer de toda a forma na sua essência”: o aparecer do ser como belo

¨ 5. - A arte como “epifania do mundo na beleza”

¨ 6. - O belo como pertencente ao acontecimento (Ereignis) da verdade: do valor estético ao valor ontológico do belo

Vª Questão ‑ Verdade e Ge-stell: a Arte e a Técnica Moderna

¨ 1. - O lugar da arte no tempo da técnica moderna: do des-velamento à pro‑vocação/mascaramento (Ge-stell) da Natureza/Terra
¨

¨ 2. - Ge-stell jusiz, alhqeia e tecnh: da possibilidade de salvaguarda da Terra

¨ 3. - O sentido de Ge-stell como “com-posição” e o esquema da programação tecnológica do mundo
3. 1. - Da habitação pela técnica à habitação pela arte
3. 2. - A arte enquanto modo privilegiado de reflexão ontológica sobre o mundo “gestéllico” ou da civilização tecnológica planetária
3. 3. - O mundo “gestéllico” das sociedades industriais e a inautenticidade da obra de arte: a arte como objecto de negócio e produto de consumo

¨ 4. - A exposição museica como modo de expropriação/violentação da arte: em torno da defesa de um “habitat natural” da arte

¨ 5. - A construção técnico-científica do mundo e a emergência da arte abstracta

¨ 6. - A “des-axiologização” da arte pela coisificação da “imagem-obra” no “projecto cibernético do mundo”
6. 1. - A relação poética homem-ser como meio de des-velamento da verdade da constelação cibernética

VIª Questão ‑ O Veredicto de Hegel e as Causas da Morte da “Grande Arte”
Algumas Des‑construções: do Estético ao Artístico e o Primado do Ontológico

A ‑ A Estética e o carácter de ser obra da obra

¨ 1. - Contra as estéticas da Erlebnis ou da concepção de arte como “experiência vivida”
1. 1. - Sobre a tradução de Erlebnis por “experiência vivida”
1. 2. - Objecções à noção de Erlebnis como ponto determinante da criação e apreciação artística
1. 3. - A “experiência vivida” e a “apreensão sensível”: a relação entre Erlebnis e aisqhsiz
1. 4. - Objecções às posições estéticas subjectivistas e a negação de uma metafísica do artista e da criação
1. 5. - Sobre o significado da expressão “carácter-de-obra da obra de arte”
1. 5. 1. - Sobre a dimensão coisificante da obra de arte: obra de arte e coisa
1. 5. 2. - Des-construção da noção metafísica de coisa

a) A coisa/obra como to upokeimenon
b) a coisa/obra como aisuhton
c) A coisa/obra como “matéria enformada” e o complexo ulh/morjh
d) O eidoz enquanto rosto da coisa/obra
e) A coisa/obra como sunolon
f) A coisa/obra enquanto ergon e como modo de energeia ou de presença do
ser
g) A coisa/obra e a “actualitas do ens actu”

¨ 2. - A natureza ilusória da “experiência vivida” e a agonia da “Grande Arte”
2. 1. - A Erlebnis como elemento constitutivo da morte da Arte.

B ‑ O Veredicto de Hegel e as causas da morte da Arte

¨ 1. - Os pontos fundamentais do veredicto de Hegel
1. 1. - Arte, verdade e existência.

1. 1. 1. - A arte como acontecimento da verdade
1 .2. - Arte como necessidade suprema da realização do Espírito.
1. 3. - A Arte como coisa do passado
1. 3. 1. - A destinação da arte e a não-arte.
1. 3. 2. - Arte e não-Arte/Mundo e não-Mundo

¨ 2. - Em torno da questão da temporalidade/historialidade da Arte.
2. 1. - As obras imortais e o valor da arte: sobre o conteúdo significante das expressões “obras de arte imortais”/”valor eterno da arte”
2. 2. - A arte e o nosso “Ser-aí” histórico: da arte como fundação historial à função historial da arte
2. 2. 1. - O exemplo do Templo Grego
2. 2. 2. - Função historial e a função ontológica de arte

PARTE III ‑ A ARTE COMO POESIA ESSENCIAL EM QUE UM POVO DIZ O SER: DERIVAÇÕES A PARTIR DO SUPLEMENTO

A - Algumas distinções conceptuais

¨ 1. - A distinção das artes: as artes verbais e as artes não-verbais

¨ 2. - O paradigma da linguagem como critério da conceptualização da Arte

¨ 3. - A natureza discursiva da Arte: a obra de Arte como texto

¨ 4. - O corolário da promoção da Dichtung a essência da Arte

B - Sobre a questão: “Porquê poetas em tempo de indigência?”

¨ 1. - A missão da arte em “tempo de indigência” e o canto dos poetas
1.1. - Sobre a essência do “tempo de indigência” e o esquecimento do Ser
1.2. - O lugar dos poetas em “tempo de indigência”

2. - O veredicto de Hölderlin: “Mas onde há o perigo, cresce/Também o que salva”
2. 1. - Sobre o significado da quinta palavra condutora de Hölderlin: “Pleno de mérito, contudo, de um modo poético habita o homem sobre esta terra”
2.2. - A ausência de Deus e o abandono dos homens
2.3. - O abismo e a ausência de fundamento
2. 4. - Sobre a poesia pensante de Hölderlin: poesia e pensamento em Heidegger

¨ 3. - O veredicto de Rilke: o belo como começo do terrível

3.1. - O abismo e a Terra
3.2. - As raízes terrestres do humano
3.3. - O homem e as outras criaturas: a diferenciação ontológica dos entes
3.3.1. - O estatuto especial do ente humano no seio do Ser
3.4. - Do homem como vontade ao mundo como vontade
3.4.1. - O “querer” como modo de determinação do homem moderno
3.4.2. - O carácter imperial da vontade do homem moderno
3.4.3. - A vontade imperial e a Técnica moderna
3.4.4. - Os modos de objectivação e dominação da vida pela técnica moderna
3.4.5. - A dominação da Técnica e a salvação da Terra: o poder e o perigo
3.4.5.1. - O dizer do poeta como caminho para o sagrado e para a salvação da Terra
3.4.6. - A dominação da técnica e o des-abrigo do humano
3.4.7. - Sobre a essência do homem em “tempo de indigência”: Rilke e Sófocles
3.4.8. - Da lógica da razão á lógica do coração: a via da interioridade/intimidade e o amor

¨ 4. - A ideia de Natureza em Rilke
4.1. - A Natureza como jusiz
4.2. - A Natureza e o risco
4.3. - A balança e o risco
4.4. - O começo e o risco
4.5. - O risco da linguagem e a salvaguarda do homem e do ser pela palavra
4.6. - O poeta e o risco: a indigência e a salvação

¨5. - O Jogo

¨6. - A Gravitação

¨7. - O Aberto

¨8. - O Obscuro

¨9. - A Esfericidade
9.1. - A esfericidade e a palavra de Rilke sobre o “vasto círculo”

¨10. - Os contrastes
10.1. - A vida e a morte: a essência da morte como forma de determinação da essência do homem
10.2. - O visível e o invisível
10.2.1. - A unidade do visível e do invisível no dizer
10.2.2. - Os Anjos e a metamorfose do visível no invisível pelo coração
10.3. - A superioridade ontológica dos Anjos
10.5. - Os Anjos e os Homens: a quietude/inquietude existencial
10.6. - Os Anjos e os homens: o habitual e o in-habitual

C ‑ Sobre a essência da poesia e da linguagem

¨ 1. - A poesia como arte originária da palavra
1. 1. - As palavras como modo de “tornar a coisa a coisa”: a afirmação da inexistência das coisas fora das palavras

1. 2. - A figura etimológica e o des-ocultamento do ser das coisas.
1. 3. - A palavra como palavra do ser
1. 4. - A palavra como marca do acontecimento (Ereignis): linguagem e acontecimento

¨ 2. - A poesia como “fundação do ser pela palavra” e a fundação como “doação livre”
2. 1. Sobre o significado do dito de Hölderlin: “o que perdura, porém, fundam-no os poetas”
2. 2. - A fundação poética e o des-velamento do ser
2. 3. - A fundação poética e a instauração do dom inicial: o rebatimento da familiaridade da aparência e o exemplo de Antigona

¨ 3 - Poesia, criação, abertura e inovação ontológica
3. 1. - A poesia como projecto de “iluminação na abertura”: a importância e significado essencial do termo “Lichtung”

¨ 4. - A poesia e a instituição de mundos históricos

¨ 5. - O habitar poético do Da-sein: a presença dos deuses e a proximidade das coisas
5. 1. - O nomear dos poetas e a abertura à essência das coisas
5. 2. - O nomear do poeta e a celebração da “palavra essencial”: O dizer do poeta como poema
5. 3. - O projecto hermenêutico como interpretação da “palavra essencial”: o primado da linguagem poética
5. 4. - A linguagem como leitura hermenêutica da experiência
5. 5. - Compreensão do mundo e projecto interpretativo: Linguagem e Mundo
5. 6. - Da linguagem como manifestação da estrutura ontológica da mundaneidade à linguagem como modo próprio do abrir-se na abertura do ser
5. 7. - A identificação do plano do conhecido e do plano do percebido: a identidade entre ser e dizer e a destruição da perspectiva metafísica

¨ 6. - A poesia como obra da linguagem
6. 1. - Sobre a essência da linguagem
6. 2. - A linguagem como abertura do mundo
6. 3. - Da linguagem como forma de comunicação à linguagem como modo de abertura do ser do ente
6. 4. - Sobre a significação específica da metáfora: “ A linguagem é a casa do ser”
6. 5. - O homem como guardião/mostrador do ser pela linguagem
6. 6. - A linguagem como manifestação da originariedade da existência
6. 7. - A linguagem do ser e a nossa linguagem
6. 8. - Linguagem, presença e manifestação
6. 9. - O papel des-ocultante da linguagem
6. 10. - A linguagem como forma privilegiada de acesso do homem ao ser
6. 11. - A linguagem como forma de des-velamento do ser, do homem e do mundo

¨ 7. - A metáfora da escuta e a significação primordial das palavras
7. 1. - O anúncio, o apelo e a mensagem: o Da-sein como mensageiro da voz do ser
7. 2. - Linguagem e Diálogo
7. 3. - O homem como Diálogo: a fundação do ser do homem na linguagem

¨ 8. - O Discurso, o des-coberto e as significações utilitárias e poéticas do mundo

8. 1. - O Discurso do mundo como palavra do ser
8. 2. - Universo do Discurso e análise existencial

PARTE IV ‑ CONCLUSÃO

¨ 1 - Heidegger: o pensar da Terra e o canto ecológico da Arte

¨ 2 - A habitação pela Arte e o pensamento do dom da Terra

PARTE V ‑ BIBLIOGRAFIA

¨ 1 - Critérios metodológicos

¨ 2 - Bibliografia Directa
A - Obras de Martin Heidegger (originais)
B - Obras de Martin Heidegger (traduções)

¨ 3 - Bibliografia Secundária - Estudos

PARTE VI ‑ ÍNDICES

¨ 1 - Índice Temático

¨ 2 - Índice Geral

¨ 3 - Índice de Ilustrações

Projecto de Dissertação de Mestrado: Algumas Conclusões


1. Assim culmimaram as nossas análises, a partir do Posfácio e de alguns pontos do Suplemento de Ukw, no que concerne à relação entre a Arte, a Técnica, a Verdade, a Beleza; a Arte, a obra de arte, o artista, a ciação e a comtemplação da obra de arte no seu nascer e no seu morrer, enveredando pelos caminhos propostos por Heidegger e por Van Gogh, limando algumas das arestas deixadas em bruto pel Estécica, abrindo espaçoos de problematização não absoluots, mas sempre em aberto, em virtude de permanecermos sempre conscientes de que cada interpretação não é senão um caminho entre múltiplos caminhos possíveis.

2. Tivemos a oportunidade de confrontar a interpretação heideggeriana da Arte, tomada no seu sentido originário, quer dizer, como “Grande Arte”, com a arte moderna dominada pela técnica implantada pela nossa civilização enraizada no mundo da indiferença, da realidade do projecto cibernético, da constelação “gestéllica”, da com-posição programada informaticamente do conjunto dos entes à escala planetária, dessa técnica que constitui uma autentica pro-vocação da Natureza, da Terra‑Mãe, outrora salvaguardada no tempo inaugural da harmonia universal de todas as coisas.

3. Verificámos que as obras de arte de hoje não têm mais as suas origens nas fronteiras de um mundo de povos e nações históricas. Pertencem à universalidade da civilizaçãoao mundial. A sua constituição e organização é projectada e governada pela técnica cientifica. É esta que decide acerca do modo e das possibilidades do estado de ser do homem neste Mundo historicamente determinado pela pura tecnicidade da relação entre as coisas: “ (...) Já só temos relações puramente técnicas. Já não é na Terra que o homwm hoje vive. (...) a técnica arranca o homem da Terra e desenraiza-o cada vez mais (...) Não é preciso nenhuma bomba atómica: o desenraizamento do homem já está aí. A engrenagem mais ampla da técnica moderna encerra a inter-relação do homem com o mundo e a terra desbravada e desamparada, uma vez que esta sociedade industrial existe no solo do estar-encerrado no âmbito dos seus próprios poderes (...) Já só um Deus nos pode ainda salvar. Como única possibilidade, resta-nos preparar pelo pensamento e epla poseia uma disposição para o aparecer desse Deus ou para a ausência do deus em declinio; preparar a possibilidade de que (...) pereçamos perante o Deus ausente”[1].

4. Conatatámos, ainda, evocando o próprio canto da Arte nos seus momentos de poesia pensante que “o mundo não pode ser aquilo que é tal como é só mediante o homem, mas também não pode sê-lo sem o homem” e que esta problemática se liga ao “Ser”, esa “palavra há muito tradicional, multívoca e hoje desgastada” que “precisa do homem para a sua manifestação, custódia e configuração”[2]. Por isso afigurou-se necessário voltar a trás em direcção ao principio (onde se encerra o que há de mais inquietante e de mais misterioso) que nos havia indicado a deusa Atena, quer dizer, ao parentesco inicialmente existente entre jusiz e tecnh ; deixarmo-nos conduzir até àquilo que tendo sido nomeado no início do pensar ocidental foi necessariamente deixado impensado e se tem ocultado permanentemente ao nosso pensar, para que obra de arte possa mostrar de novo o que não está directamente à disposição do homem, aquilo que amiúde se encobre e que urge ser desocultado. Isto corresponde à escuta intima do apelo do Ser e simultaneamente ao doar da resposta adequada a que tal apelo nos conduz.

5. O caminho a percorrer foi-nos sugerido e indicado pela obra de arte, a única capaz de mostrar, na sua autenticidade radical, aquilo que não está à disposição do homem, aquilo que se encobre e que apela para outra direccionação da escuta e do olhar. Só assim poderemos conceder à Arte, enquanto obra, o poder de dizer o que ainda não é sabido, de mostrar o que ainda não é mostrado, de fazer ver o que ainda não é visto, de molde a que se possa acordar, no homem, o que não se deixa planear, nem calcular, nem alienar por meios estranhos à semelhança daqueles impostos pelo mundo da cibernética, pelo imperialismo da ciência-técnica moderna que esgotam a entidade própria do ente, que não deixam ser o ente como algo que é e que revela esse fundo fundante que designamos numa única palavra: Sein.

6. A Arte é pois epifania, mostração primordial do Ser na sua verdade, ao fazer aparecer o que ainda não é como é. O exercício de ser da Arte não é senão o des-cobrir en-cobridor que põe a coberto a essência. Esta tese indica-nos que a via de uma ontologia da Arte recusa-se a seguir os passos da teoria estética e que a atitude do pensar jamais se pode conceber como a necessidade antropológica de respostas cientificamente demonstradas e só em aparência cabais.

7. Procurou-se tão só dar voz à interrogação espectante e serena do jogador que se sabe em jogo, mesmo ainda antes de conhecer as cartas que lhe toca jogar. Eis o grande apelo e interpelação da obra de arte autêntica manifestamente explicitado não apenas pela pintura, cujo representante supremo é para Heidegger Van Gogh ‑ aquele que pinta as cores da Terra sem no entanto fazer da sua tela o fundo a partir do qual se desenvolve o talento ou o génio do artista, mas que ao invés faz da tela o topoz originário onde o Ser se mostra na sua verdade e a obra que por si mesma fala ‑ mas também, e quiçá sobretudo, pela poesia (Dichtung), onde repousa , em última instância a essencialidade da Arte.
Reflectimos, pois, “sobre o Heidegger, pensador da terra, enqunato pensador do tempo como desdobramento dos entes, pensador do Ser como a Europa nunca o soube, nem os greghos (...), pensador do futuro, do que vem, nos abre ao habitar como ortais, como filhos da Terra, a grande doadora, nossa destinadora. Assim (lemos) Heidegger, o Geo-Logos, o pensador da Terra”.[3]


Notas:
[1] M. Heidegger, “Já só um Deus nos pode salvar”, in Filosofia, Vol. III, Nº 1/2, Outono’89, p. 121 - 122.
[2] Idem, p. 122.
[3] Fernando Belo, Heidegger. Pensador da Terra, p. 56.

Projecto de Dissertação de Mestrado, Parte IV, 6.


6. A essência da arte como o aparecer da essência da verdade e da beleza: em torno da interpretação do quadro de Van G ogh “Um par de Sapatos”

Mas, afinal, o que é que se faz obra na arte? A verdade de todo o ente que é, coisa ou produto. O ser do que é chega pela obra e sobretudo por ela ao seu parecer.
É para a explicitação de uma tal problemática que nos induz um dos quadros de Van Gogh, onde podemos observar “Um Par de Sapatos” de camponês. Ao contemplarmos este quadro, podemos efectivamente objectar, que nada existe para ver, para além daquilo que é realmente dado, em virtude de cada um saber perfeitamente o que é um par de sapatos de camponês. À volta deste par de sapatos não existe rigorosamente nada a não ser um espaço vazio, em virtude de não encontrarmos nenhum elemento do seu uso ou da sua utilidade. Então, porque razão devemos contemplar uma obra de arte com o objectivo de nela encontrarmos manifestamente expresso a utilidade de tal ou tal produto assim representado? Colocar uma tal questão perante uma obra de arte, seja ela uma pintura, uma escultura ou uma partitura musical, é pura e simplesmente adulterar não somente a obra enquanto obra, mas toda e qualquer atitude estética possível.
Heidegger situa-se, obviamente, num campo totalmente diferente, vendo naquilo que a obra representa a essência do representado. Somente na obra podemos perscrutar em que reside a essência do útil de um tal ente. A utilidade assim representada supõe, por um lado, a pertença secreta a um Mundo e, por outro, a aliança originária que permite escutar o apelo silencioso da Terra, entendida no seu sentido mais originário, quer dizer, enquanto jusiz. Este Mundo campónio do trabalho, esta pertença à Terra - que o filósofo descreve com um lirismo assaz curioso - constitui precisamente a verdade do útil , a qual apenas o quadro de Van Gogh, obra da consagrada “Grande Arte”, pode efectivamente mostrar. Só ela faz “saber o que é em verdade, um par de sapatos”[1]. Representando um produto, a obra de arte tem esse poder privilegiado de fazer desabrochar a veracidade originariamente pertencente ao seu próprio ser.
Porém, não nos é permitido inferir que a obra de arte consista simplesmente na ilustração do que é um produto. Muito pelo contrário, é o ser-produto do produto que advém à luz na obra. A obra é a abertura que deixa emergir o que é o produto na sua verdade. Nela o ente faz a aparição na eclosão do seu ser, ou seja, na sua verdade. Eis onde reside a essência da Arte enquanto Arte: no “dispor-se em obra da verdade do ente” (Sich-in-Werk-setzen der Wahrheit des Seienden)[2]. Esta assunção da mostração da verdade pela obra de arte, surge na tematização heideggeriana segundo dois modelos interpretativos que podemos consignar nas duas díades: Mundo/Terra, clareira/retraimento. É, a um tempo, no enlaço e no hiato destes dois modelos que a concepção heideggeriana da arte ganha, na nossa perspectiva, a sua mais fecunda peculiaridade.
O que na obra se consigna e apresenta segundo a dicotomia Mundo/Terra está ainda na dimensão não-veladora da verdade heideggeriana. Em rigor, trata-se de perspectivar o que, estando em obra na obra tem relação ao humano, à sua estada na Terra e ao seu desbravar de um mundo, prerrogativa exclusiva do modo de eksistência do Dasein.
Esta definição deve ser pensada a partir do sentido originário do termo grego jusiz, que significa acção de colocar, de obrar e, mais radicalmente, “instalação na abertura”[3]. Assim, Setzen, um dos termos centrais desta concepção, assume, por um lado, a significação de Feststellen, quer dizer, de construir, de deixar surgir ou fazer emergir a obra, de pro-duzir (Her-vor-bringen). O dispor em obra da verdade não é senão o acto de criação da própria obra enquanto obra.
Por outro lado, Setzen toma o sentido de “instituir” que é equivalente à expressão “Zum stehen bringen”: situar em constância. Isto quer dizer que um determinado ente é trazido pela obra à instância (Dastehen) na nítida transparência (das Lichte) do seu próprio ser. O termo “instruir” manifesta que “existe na essência da verdade uma atracção para a obra”[4], por intermédio da qual ela atinge a plenitude do seu ser.
À luz desta perspectivação, em “Um Par de Sapatos”, de Van Gogh, dá-se o instituir do ser sapato do sapato, que nos faz ver o amoldar-se do couro e da sola ao pisar do lavrador que ara a Terra e descansa no serviço que as botas lhe prestam e não a eventual beleza desses sapatos apresentados na obra. Vemos, ao invés, a beleza da servilidade do utensílio em causa que deixa vir ao de cima o desleixo ontológico, o carácter errante da existência humana, o des-encontro do ser-aí empobrecido, sofrido e gasto, mas sempre vivificante e vivificado, pela presença do dom da Terra que nunca se afasta. O tipo de beleza criada pela imagem abriu-nos, manifestou-nos as dimensões ocultas do destino do Ser na vivência com o homem, a essência da arte que se apresenta, por este quadro como a epifania do mundo na beleza dada, justamente, pelo próprio aparecer da verdade.
O instruir espontâneo da verdade na obra, para onde nos conduziu a interpretação do quadro de Van Gogh, corresponde à instalação do próprio ser da obra, uma vez que a verdade é sempre a verdade do Ser. Heidegger faz emergir a ontologia como o único fundamento possível de uma teorização autêntica acerca da Arte. Mas, fazer da verdade a essência da Arte não será desviá-la do campo a que sempre pertenceu, e retirar à Arte o domínio originário da sua ocupação, onde a categoria do Belo emergia como o seu elemento fundamental e fundante? Será que esta perspectivação da Arte nos permite compreender o fenómeno da Arte contemporânea, independentemente das correntes artísticas onde nos possamos situar? São apenas três as referências que Heidegger faz ao Belo e, em nenhuma delas, esta categoria que perpassou toda a discussão da Estética Ocidental, surge com uma relevância específica, tomada por si mesma e autonomamente determinada. Apresenta-se como dada numa relação umbilical com a verdade, que se torna em si mesma a categoria o elemento fundante da teoria da Arte professada pelo filósofo[5].
De notar que o Belo não é concebido como uma qualidade subjectiva, mas como algo de objectivamente dado, como uma qualidade que não pertence ao sujeito que contempla a obra, mas como uma característica que o objecto possui em si mesmo, a qual é visionada pelo sujeito no momento de eclosão da verdade: “A luz do aparecer da verdade em obra é a beleza. A beleza é um modo de eclosão da verdade”[6]. O Belo é o “instrumento” disposto ao serviço da verdade, o modo próprio da verdade se apresentar em obra. A limite, funde-se com a própria verdade, perdendo o seu estatuto próprio no seio da obra. A beleza não se encontra mais ao lado da verdade; ela é a luz da própria verdade que faz ver o Ser. Considerado, nesta dimensão, o Belo não é em si mesmo relativo ao prazer estético, mas apenas àquilo que reside na forma (morjh) do objecto, aquilo que abre a clareira a partir do Ser e que em virtude de tal abertura o faz ver. O Belo não tem mais um valor estético, mas ontológico.
A a-presentação na e pela tela de “Um Par de Sapatos”, pintado por Van Gogh em 1887 ‑ exposto no Baltimore Museum of Art, à disposição de todos os olhares e à mercê de todo o tipo de interpretações e aos múltiplos modos possíveis de contemplação consoante os óculos com os quais a tela é perspectivada ‑ é única, inconfundível ou irredutível, não existindo, portanto, qualquer outra representação ou apresentação que se assemelha a este quadro sempre em aberto, enquanto ente que alude e denota o mundo campónio do trabalho da terra que desde sempre fascinou o pintor e o filósofo que, como ninguém, mostrou as cores da terra na sua pureza originária, sem, no entanto, copiar a Natureza, mas deixando-se apenas guiar por ela, como bem exemplificam as múltiplas Naturezas‑Mortas do fecundo “Período Francês Inicial” sob o signo da “luz crua do sol”.
O objecto apresentado, o mundo a que alude e a terra que exemplifica; a simbolização do trabalho da terra que em si mesmo encerra, a metaforização da vida campónia e a expressão que dessa vida capta são um absoluto irrepetível, não particularmente em virtude do objecto apresentado, mas sobretudo pela mostração de um estilo que se manifesta numa singularidade irreiterada e irreiterável: o traço, a cor, a pincelada estão aí (no quadro e na mundivisão que nele se dá) na sua mais íntima e pessoal especificidade, que não é senão um modo de singularidade do pintor e da obra se darem universalmente.
Este posicionamento não nos induz, porém, a visionar a pintura de Van Gogh ou a Pintura, à luz de um subjectivismo irremediável que permita estabelecer a apologia do primado do artista sobre a obra. Aliás, defendemos que artista e obra são dados numa relação cronológica e ontologicamente dialéctica que extravasa a própria morte do artista, cuja presença é sempre marcada pela simples presencialidade da obra.
Van Gogh pintou os sapatos porque eles lá estavam. Não são um objecto ou coisa mental, nem tão pouco uma figuração imagética ficcionada pelo artista, mas os sapatos, aqueles sapatos colocados num topoz que lhe é próprio, que constitui o seu “habitat natural” acolhido e re-colhido, essencialmente, na obra.
Van Gogh consegui o mérito de distinguir não propriamente a beleza dos sapatos, mas o carácter especifico deste ente particular. A bota com laço por fazer e com a língua pendendo para a frente toca a sua companheira colocada de costas e de cabeça para baixo, cujos reforços de metal não se cansam de brilhar. São um par inseparável, atraem-se um ao outro como todos os opostos. Unidos um ao outro co-habitam umbilicalmente na mesma esfera existencial. Este tema apresenta-se-nos como uma re-presentação do próprio Van Gogh que acreditava, sem reservas, no caminhar, tal como Heidegger observando-se a si próprio como um “pintor peregrino, entorpecido e pertinaz”, seguindo, por vezes, a via dos “Chemins qui ne mènent nulle part/entre deux prés”[7], que experienciou múltiplas vezes o que significa estar nos Holzwege.
Aliás, a vida não é senão a jornada de um peregrino, estranho na Terra, uma grande caminhada desde a Terra até ao Céu, que as gastas solas de “Um Par de Sapatos”, testemunham na sua veracidade: “Pela estrada segue um peregrino, bordão na mão. Já há muito que tem vindo a caminhar e está muito cansado. E agora encontra uma mulher, uma personagem escura que nos faz pensar nas palavras de S. Paulo”, escreve Van Gogh[8], o colorista para quem nada parecia mais pacífico do que o amarelo e o azul, nada mais indicativo “dos poderes da solidão” do que o verde malaquite, o enxofre ou o vermelho. Saído do texto e da ilustração dos seus sermões, Van Gogh viu-se dominado por uma linguagem que o arrebatou por ser universal. São as cores dos girassóis, dos lírios, do sol, das estações do ano ou das amendoeiras em flor, que o fascinam, cores com um conteúdo particularmente simbólico e extraordinário, com impacto directo no fino olhar do espectador.
O Van Gogh pregador e o Van Gogh pintor, unem-se num só sujeito na produção criadora que é a arte, que, ao contrário dos outros pintores, sempre pregaria como um amador, mas com urgência de salvar, pelo que o seu artista ideal apresenta-se como aquele que “vivia serenamente como um artista maior que os outros artistas, criando a partir do mármore e do barro tal como da cor, trabalhando a carne viva”. E Cristo afigura-se-lhe como esse artista que renunciou a tudo por “uma básica e simples vida”[9], e não apenas por uma pura abstracção, deixando as próprias coisas falar. Eis a grande tarefa do pintor, do artista: “Bem, a verdade é que nós só podemos fazer as nossas pinturas falar”[10], sem nunca podermos falar por elas.
Um dos lados da Geviert heideggeriana, o humano e o divino, espelha-se no efémero percurso do artista que encontra no seu trabalho algo a que se pode dedicar de corpo e alma, que o inspira e que confere sentido à sua própria vida. Vincent demonstra uma “firme fé na arte, uma firme confiança em ela ser uma poderosa corrente que conduz o homem ao seu destino”[11], função que a chamada arte moderna deixou de ter para Heidegger: “quero reafirmar que não vejo a onde apontam as vias da arte moderna, tanto mais que continuo obscuro, onde é que, para a arte, está aquilo que lhe é próprio, ou pelo menos o que ela busca”, afirma o filósofo na entrevista concedida à revista alemã Der Spiegel[12].
Talvez pareça ao leitor que os modos interpretativos a que nos conduziu “Um Par de Sapatos” nos afastem do cerne da exegese artística heideggeriana que, como qualquer outra, emerge como uma interpretação possível, apenas validada pela sua própria legitimação fundante. Porém, tal como Van Gogh, Heidegger fixa-se no trabalho da terra feito pelo camponês que, após a longa caminhada de um exausto dia de trabalho, descalço repousa depois do meio dia, sob as grandes medas de trigo, rodeado da palha em desordem, do par de sapatos e do par de foices, juntos em repouso. Aqui não é linguagem do pintor que fala mas a linguagem das cores. É a linguagem camponesa que agora emerge, a partir da sua concentração em momentos nos quais o trabalho da Terra é plenamente dignificado e profundamente respeitado.
A pintura “Meio-Dia: Sesta (a partir de Millet)”, é o grande complemento interpretativo, não apresentado por Heidegger para a compreensão de “Um Par de Sapatos”. Datado de 1880, esta magnifica pintura mostra a paz feliz, a serenidade campónia após horas produtivas, o contentamento básico da ligação à terra, da sua salvaguarda e preservação originária. Neste quadro, como em “Um Par de Sapatos”, situamos o ponto de encontro, o momento de união entre o pintor e o filósofo, quais seres errantes vivenciadores de uma caminhada feita sob a base de um par de sapatos cada vez mais gastos e carcomidos, símbolos da fascinação do dizer da terra pela pintura, essa linguagem que penetra o ser de cada ente nela re-presentado. A fé na arte satisfaz as exigências destes peregrinos que constantemente progridem numa busca constante até ao ser verdadeiro. A arte não é propriamente um meio, mas um fim em si mesmo, a que o pintor e o filósofo se dedicam de corpo e alma, encetando pela prática constante de des-ocultar o que se situa para além da trivialidade da existência não ultrapassada pela escuta comum do homem desatento ao apelo do Ser.
A arte transporta Van Gogh e Heidegger para as arrebatadoras imagens inserida na vida do camponês, de crescimento, de colheita e de renovação, que o pintor expôs magnifica e inteligentemente nas suas pinturas e o filósofo nas suas reflexões sobre a arte.
“O Pátio do Carpinteiro e Roupa Branca” (1882), “A Casa Amarela de Arles” (1888), “Vinhedos Vermelhos em Arles” (1988), “Um Par de Sapatos” (1890), para citar apenas alguns exemplos, cada campo, cada árvore, cada pessoa confrontado com intenções de ser retractado, significa tão-só a tentativa de captar essências, de auscultar a origem das coisas, de as exprimir tal como são em si mesmas e não apenas como parecem ser. O pintor capta a realidade, pelo que a presença de um par de botas, dos girassóis, da rígida cadeira, da aldeia a esvair-se sobre a chuva é, a um tempo, ilustrativa e iluminatória.
O olhar de Van Gogh, a sua apaixonante celeridade e o seu radioso uso do azul cerúleo, laranja, vermelhão, cor-de-rosa, amarelo berrante, verde berrante, cor de vinho berrante ou violeta, penetra-nos na intimidade das coisas, tornando-as próximas, pelo que somos capazes de captar a sua essência orgânica dada por esta linguagem, a pintura, que não se limita a copiar o mundo e a terra, mas, sobretudo, a exprimi-los na sua nudez primacial. Por isso, a única coisa que conta é a “força da expressão de cada um, afirma Van Gogh, mas desde que essa expressão produza representações “mais verdadeiras do que a verdade literal”.
E as cores, o traço, simbolizam essa verdade mais do que literal de que o pintor fala reiteradamente. O amarelo, por exemplo, representa “o expoente da claridade e do mar”, como o autor afirma sobre “A Casa Amarela” (1888), na qual esperava estabelecer uma comunidade artística. A cor na pintura de Van Gogh, torna-se de facto fundamental, nunca sendo aleatoriamente escolhida, mas em função de um estudo analítico das próprias cores que a Natureza nos faz ver. Jogando com as cores, a pintura aparece como um poderoso meio de expressão, ao permitir dizer, a um tempo, coisas delicadas, ao deixar falar um cinzento ou um verde suave no seio da nudez das próprias coisas. E este dizer da pintura é o dizer do que é; e o pintor sente como ninguém o poder da cor.
Existe na pintura qualquer coisa de infinito, qualquer coisa verdadeiramente admirável que permite exprimir de uma maneira sublime uma atmosfera tal como há nas cores coisas escondidas, como a harmonia ou o contraste que só por elas são expressas de uma maneira mais autêntica. É isto que permite ao pintor, através do jogo das cores pro-duzir qualquer coisa que tenha alma. Não obstante olhar para a tela, em branco, com uma certa angústia e descontentamento, apesar de ter dentro de si bastante presente essa maravilhosa Natureza para que possa ficar contente de ver na sua própria obra um eco que o impressiona, de ver que a Natureza lhe apresenta qualquer coisa, que quer falar consigo, cabendo-lhe apenas tomar nota da sua mensagem.
Desse discurso da Natureza, da Terra, para com o pintor fica sempre qualquer coisa do que o bosque, a praia, ou a figura dissecam, não numa língua domada ou convencional, mas na língua que nasceu da própria Natureza, que fez sentir ao próprio pintor, bem como ao poeta e ao filósofo, no interior de si mesmo, o poder de criar, de fazer quotidianamente qualquer coisa, que o evade, que o extrai das coisas que vê e que lhe falam, que lhe dirigem constantemente o apelo de fazer alguma coisa que tenha alma.
Van Gogh é o pintor da Terra, do trabalho da Terra, tal como Heidegger é o pensador da Terra. Por isso não se cança de afirmar: “Quando digo que sou pintor de camponeses, é assim mesmo na realidade e verás melhor com a continuação que é aqui que me sinto no meu elemento. (...) Misturei-me tão intimamente na vida dos camponeses, à força do os ver continuamente a todas as horas do dia, que realmente não me sinto atraído por outras ideias”.[13]
Van Gogh apresenta a Arte como verdade, tal como Heidegger. Afirma como grande tema da sua pintura os trabalhos do campo, a alma própria do camponês tal como ela se desenvolve quotidianamente no contacto com a Terra, pano de fundo onde se move grande parte do quadro conceptual da filosofia heideggeriana e da sua perspectivação sobre a Arte. A Arte é, pois, por essência, Wahrheit, Verdade. Significará uma tal afirmação que a obra de arte é apreendida como cópia ou como reprodução mimética do real? Ou será que a obra de arte consiste numa simples representação de uma ideia que habita genialmente na mente daquele que a cria? Tanto um como outro postulado, que predominaram em algumas épocas da História da Estética, jamais têm lugar no pensamento heideggeriano. A sua noção de verdade, bem como a de criação, encontram-se situadas muito para além do que é entendido como representação ou cópia da natureza.
A concepção de Arte como mimesiz está completa e definitivamente fora de questão. Todavia, também não se trata de fazer renascer a concepção tradicional de verdade como conformidade a um objecto, como uma “adaequatio”, como a entendeu a Idade Média, ou como omoivsiz, segundo o entendimento de Aristóteles. Verdade significa, aqui, “fazer-provir” (Ver-an-lassen) o que está em estado de latência à não-latência. Ver-an-lassen diz respeito à presença de tudo o que aparece, no sentido de pro-duzir (Her-vor-bringen), sendo o pro-duzir o único meio pelo qual o que é oculto chega ao estado de não-ocultação. A um tal acontecimento dá-se o nome de desvelamento - alhqeia , Wahrheit. E por desvelamento entende-se o vir-à-luz do Ser. É esta a essência da verdade.
No entanto, “a verdade, escreve Heidegger, como clareira e ocultação do ente, acontece na medida em que se poetiza. Toda a arte, enquanto deixar-se acontecer da adveniência da verdade do ente como tal, é na sua essência Poesia. A essência da arte, na qual repousam simultaneamente a obra de arte e o artista, é o pôr-em-obra-da-verdade. A partir da essência poetante da arte acontece que, no meio do ente, ele erige um espaço aberto, em cuja abertura tudo se mostra de um outro modo que não o habitual”.“(...) a poesia é aqui pensada num sentido tão vasto e, ao mesmo tempo, numa união essencial tão íntima com a linguagem e a palavra que tem de permanecer em aberto se a arte, e mais propriamente em todos os seus modos, desde a arquitectura à poesia, esgota a essência da poesia”.[14]
Notas:
[1] Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, in Caminhos que não conduzem a parte nenhuma, p. 36.
[2] Martin Heidegger, op. cit., p. 37.
[3] Martin Heidegger, op. ci., p. 68.
[4] Martin Heidegger, op. cit., p. 69.
[5] A primeira referência ao Belo encontra-se na p. 27, a segunda na p. 62 e a terceira na p. 92, da edição da obra supra citada.
[6] Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, in Caminhos que não Conduzem a parte Nenhuma, p. 62.
[7] Rainer Maria Rilke, Frutos e Apontamentos, p. 216.
[8] Cf. William Feaver, Van Gogh, p. 6
[9] Cf. op. cit., p. 5.
[10] Van Gogh, “Carta a Theo, Junho de 1980”, in op. cit., p, 24.
[11] Cf. William Feaver, op. cit., p. 7.
[12] “Já só um Deus nos pode ainda salvar” ‑ entrevista concedida por Martin Heidegger à Revista alemã Der Spiegel em 23 de Setembro de 1966 e publicada no nº 23/1976, in Filosofia, Vol., Nº 1/2. Outono’89.
[13] Cf. Orlindo Gouveia Pereira, Vincent Van Gogh. Palavra e imagem., p. 95
[14] M. Heidegger, UKw, in Holzwege, pp. 59 e 62.

Projecto de Dissertação de Mestrado, Parte IV, 5.



5. A obra como “ser-criado”: criação e salvaguarda

Não obstante todas as referências que foram feitas relativamente à problemática da criação, aquando da diferenciação entre pro-dução artística e produção artesanal, outros elementos devem ser, de igual modo, salientados para uma melhor compreensão desta temática. Antes demais é necessário fazer notar que a expressão “ser-criado” introduz-nos manifestamente no âmago da relação estabelecida entre o criador e o pro-duto da criação. O que existe de propriamente obra na obra consiste no facto de esta ter sido criada pelo artista e não produzida. Devemos tomar em consideração a actividade própria do artista para encontrar a origem da obra de arte, uma vez que qualquer tentativa de determinar o ser-obra exclusivamente a partir da obra afigura-se como algo completamente impraticável.
Teremos de afastar a ideia de que a relação estabelecida entre o artista e a obra, nos possa conferir o direito de exaltar o “génio” daquele que exerce uma actividade assim determinada. Heidegger é bem claro no que concerne a este ponto, quando afirma que “o ser-criado não deve testemunhar o êxito daquele que tem um tal mister, para dar assim privilégio público ao realizador”[1]. É, de certo modo, decretada a “aniquilação” da presença do artista após o acto de criação, em prol da apologia da sobreposição do criado em relação ao criador. É manifesto que o autor não visiona a criação como o resultado do exercício de uma virtuosidade genial de um sujeito soberano, tal como ela é interpretada pelo subjectivismo moderno. Ao invés, evidenciando uma relação umbilical com a teoria da verdade, a “criação” artística consiste simplesmente em “extrair” (Schöpfen) a verdade do ente e em colocar uma tal verdade em obra.
Se assim é toda e qualquer possibilidade de criação - entendida no sentido de fazer brotar o que ainda não é, significação habitual do conceito - é completamente inviável no sistema filosófico heideggeriano. Se quisermos manter o termo “criação”, teremos de o pensar exclusivamente no sentido de pura representatividade daquilo que se mostra: “criar” não é mais do que um modo de des-velar, de dar a conhecer, de apresentar e representar o Ser na sua verdade; toda a criação é, nesta perspectiva e por analogia com a noção tradicionalmente concebida deste conceito, uma falsa criação e o artista é apenas o mero intermediário entre o Ser a desvelar e a obra que o desvela. A função do artista não é a produção de algo de novo , mas o fazer surgir, o trazer à luz o que já é e permanece em estado de pura latência. O artista é o desocultador, o desvelador do que por si mesmo não se mostra, e a obra é o meio privilegiado dessa mostração, dessa des-ocultação, desse des-velamento. A obra é um texto e a criação é um acto permanete hermenêutico
O artista, enquanto sujeito autónomo e auto-suficiente perante a obra, desaparece completamente para dar lugar ao mero recebedor ou captador da verdade do ser. Situa-se no domínio da mais inerte passividade, não passando de um mero instrumento por meio do qual a verdade do ente é disposta em obra. Todas as características que a dita Estética lhe têm atribuído originariamente, tais como a livre capacidade de imaginar ou criar, de transformar em obra um sentimento ou uma ideia, de produzir originalmente o que ainda não é, são-lhe completamente coarctadas. Por isso, o “ser-criado” da obra consiste, apenas, na constituição da verdade em estatura, isto é, no tomar forma da verdade no ente.
Embora se torne real no curso deste processo de criação , depende a sua realidade deste processo, o “ser-criado” não é suficiente para definir a essência da obra de arte. Em vez de submetermos a obra aos nossos desejos e à nossa inteligência, devemos deixar a obra ser obra, permitindo-lhe que seja realmente o que é em verdade. A esta postura, Heidegger chama vigilância/cuidado ou salvaguarda (Bäwahrung) da obra.
Senão podemos conceber a obra sem ter sido criada, também não podemos conceber o criado sem guardiões, na medida em que é apenas na salvaguarda que a obra se dá no seu “ser-criado” como tal. Esta salvaguarda é essencialmente Saber (Wissen), e este modo particular de conceber o Saber jamais diz respeito à experiência estética individual, jamais se confunde com a simples informação erudita. Trata-se de um saber meditativo que não é mais do que uma preparação prévia e indispensável para o vir a ser da verdadeira Arte. É o Saber assim concebido que pode preparar gradativamente à obra o seu espaço próprio, aos criadores as suas vias e aos guardiões o seu local apropriado. Neste sentido, o saber apresenta-se, por um lado, como um querer, como uma resolução e, por outro, como uma instância superior ao conhecimento do conhecimento.
Salvaguardar a obra consiste em permanecer na verdade do ente que advém em obra. Esta fidelidade à verdade da obra que nos liberta da empresa quotidiana do ente, direccionando-nos para o Ser; longe de isolar os homens, fá-los entrar na pertença da verdade advinda em obra, fundando uma comunidade de homens. Salvaguardar é, a limite, o modo supremo de contemplação, é a verdadeira “atitude estética” heideggeriana. Por contemplação não deve entender-se, contudo, a simples observação ou deleitação perante o objecto. Contemplar significa: dispor-se na verdade advinda em obra, e permanecer atento ao brilho dessa verdade.
A Arte é bem o dispor em obra da verdade do ente pela criação e pela salvaguarda. Criadores (artistas) e guardiões (contempladores) formam uma única comunidade que pertence à essência da obra: “se a arte é a origem da obra, isto quer dizer, que ela faz surgir na sua essência o que, à obra, pertence reciprocamente: a comunidade dos criadores e dos guardiões”[2]. A arte torna-se não mais do que a salvaguarda criadora, criando a verdade na obra, tese que permite a Heidegger ultrapassar a oposição evidente entre a contemplação e a criação, entre o gosto e o génio.


Notas:
[1] Martin Heidegger, op. cit., p. 73.
[2] Martin Heidegger, op. cit., p. 80.

Projecto de Dissertação de Mestrado, Parte IV, 4.


4. O “ser-obra” da obra como combate entre mundo e terra

“Terra silente onde nem os profetas falam,
terra que prepara o seu vinho;
onde as colinas cheiram a ainda aos Génesis,
não temendo que se desfaça.
Terra por demais altiva para aspirar ao que transforma,
que, obedecendo ao estio,
à imagem do olmo e da nogueira, parece
feliz com o que não muda.
Terra em que só quase as águas trazem novas,
todas essas águas andantes que se entregam,
infiltrando, por entre a aspereza das tuas consoantes
e claridade das vogais que lhe pertencem”

“Terra que canta trabalhando,
terra feliz de labor querido;
enquanto as águas prosseguem cantando,
a vinha tece o seu tecido, gota a gota,
Terra que se cala porque o silêncio das águas
é puro excesso de silêncio desmedido,
desse silêncio que se cria entre palavras,
essa palavras que, aos ritmos avançam”.[1]

Como tinhamos observado a propósito do exemplo do templo Grego, a obra é, em primeiro lugar, a “representação de um mundo” ‑ Aufstellen einer Welt ‑ Aqui o termo Welt não é dado como um conceito análogo à ideia Kantiana de Mundo, não significando, portanto, um simples ajustamento de coisas dadas, numeráveis ou inumeráveis; não é um objecto colocado perante nós para que o consideremos, não é algo de palpável ou de imediatamente perceptível pelos orgãos dos sentidos, ao transcender a tangibilidade fenomenal dos objectos realmente dados. Por Welt, ao invés, entende-se o conjunto característico de pensamentos, ideias, crenças, costumes e sentimentos próprios de uma época histórica determinada. É uma dimensão cultural emergente que caracteriza esta ideia peculiar de Mundo.
O Mundo representa uma existência concreta, histórica e particular. É o local onde se desenrola a história de um povo, é a expressão de uma cultura. Pelo Mundo a obra de arte está ligada, de múltiplas maneiras, aos grandes eventos da vida de um povo. Tem parte integrante no nascer e no morrer, nas suas alegrias e nas suas tristezas. É o espelho sempre vivo e vivificante de uma memória cultural que não se deixa perder no tempo e no espaço. É o monumento consagrado de tudo isso, a expressão mais marcante da vivencialidade de uma época, espelhando a sua alma, a sua essência mais recôndita. Nela o povo toma a verdadeira consciência de si mesmo, encontrando nela o testemunho manifesto da época em que vive. A obra é doadora do tempo, e este deixa nela marcas eminentes da sua presença.
Instalar (Aufstellen) um Mundo é, pois, o que significa ser obra. Aufstellen não designa, porém, uma simples exposição num Museu ou numa Galeria de Arte. Designa o “erigir para consagrar e glorificar”[2]. Toda a obra representa e celebra um Mundo, encarna a civilização da qual nasceu; constitui a época humana de que faz parte, sendo sempre um testemunho, um coisa viva.
Em segundo lugar, a obra é a revelação da Terra (Herstellen der Erde). Ao erigir um Mundo, a obra, longe de deixar desaparecer a matéria, manifesta-a. É indissociável do mármore ou da madeira de que é feita, bem como do céu ou da luz que o ilumina. Toda a obra tem um local natural, um topoz, que a topografia jamais pode percepcionar. Este local é capital para o emergir da obra, e uma vez emersa ela ilumina-o. Todas as coisas deste Mundo são o que são porque se destacam do fundo obscuro que as suporta. A este fundo os gregos chamaram jusiz: instância inesgotável de onde todos os entes emergem originariamente, predominância estável que faz desabrochar o ente na máxima plenitude do seu ser, fundo amorfo onde todas as coisas tomam forma determinada. A um tal fundo fundante, Heidegger chama Terra (Erde).
A Terra que, por essência se desdobra em todas as coisas, simboliza a Natureza, “a matéria‑primitiva”, o fundo (Grund) secreto pelo qual todas as coisas vêm à existência. Só esta análise nos permite chegar à verdadeira coisidade da obra: a obra é bem uma coisa não porque seja uma matéria informada, mas porque pertence à Terra, a partir da qual todas as coisas recebem a sua determinação específica. Instalando um Mundo, a obra faz provir a Terra, esse local onde o homem, dado na sua historicidade, funda o sua habitação no Mundo.
Mas é preciso notar que a Terra (no sentido de jusiz) não se dá como uma abertura na clareira (Lichtung). Bem pelo contrário, enquanto fundo abissal que é surge, por essência, como algo que se fecha em si mesmo, como algo que gosta de se esconder. A Terra é o fundamento oculto, mas essencial a toda o obra de Arte, não havendo obra que não lhe pertença. Longe de se opor à natureza‑ ‑jusiz ‑ a Arte tem esse privilégio, sendo a única, de estar em consonância com ela, manifestando-a como aquilo que não pode ser manifestado. A obra de arte escava até ao fundo os domínios insondáveis da natureza, trazendo-os à luz do dia na sua máxima veracidade, mas nunca mimeticamente.
Mundo e Terra, embora sejam dados distintamente, são, contudo, intrinsecamente inseparáveis: o Mundo funda-se sobre a Terra, e a Terra surge através do Mundo. Repousando sobre a Terra, o Mundo aspira, no entanto, à sua dominação. Mas, a Terra, por seu turno, e enquanto salvaguardante, pretende nela fazer entrar o Mundo para o reter em si mesma.
Afrontando-se, Mundo e Terra travam entre si um combate. Porém, combate não significa aqui discórdia ou disputa. A noção que o termo em si mesmo encerra jamais pertence ao domínio da pura destrutividade. Ao invés, evidencia uma capital positividade: o combate apresenta-se como aquela instância onde o Mundo e a Terra ou, por outras palavras, a Cultura e a Natureza, se tornam si mesmas. Somente neste combate essencial as partes adversárias se elevam à plenitude do seu ser. É nesta elevação que os combatentes afirmam a sua essência, quer dizer, auto-afirmam-se (Selbstbehauptung) numa reciprocidade primordial. Assim, a Terra não pode renunciar à abertura do Mundo se quer ser ela mesma e o Mundo, se quer ser ele-próprio, não pode esquivar-se à predominância da Terra. Este combate tende para o equilíbrio, para a unidade. A limite, o combate não é senão a unidade da diferença no mesmo.
A obra de arte realiza no seu seio o combate original. Aliás, ela é mesmo a primeira instigadora desse acontecimento, em cuja realização reside, de um modo autêntico, o ser - obra da obra. A obra é o palco supremo de uma guerra, ao colocar em equilíbrio a luta incessante de dois elementos aparentemente irreconciliáveis: a existência bruta da Terra e o Mundo cultural do homem. Como bem observou Jean Lacoste “ a unidade que repousa na própria obra, nasce entre o mundo da claridade apolínia do destino do homem, e a obscuridade ‘dionisíaca’ da terra. A plenitude da obra é o fruto de um equilíbrio impossível entre o mundo histórico e a terra inumana”[3]. São estes os traços essenciais do ser-obra da obra.
Erguendo um Mundo e fazendo brotar os mistérios insondáveis da Terra, a obra de arte é a única potência capaz de abordar na mais alta profundidade a excepcionalidade e a misteriosidade do existente, ao promover a plena realização da verdade. Mais do que nenhuma outra actividade humana, a actividade estética faz ocorrer a verdade: “es das Geschehen der Wahrheit”, é a afirmação fundamental. Pretender-se-á significar com esta afirmação que a arte capta a verdade absoluta do realmente existente? É evidente que não. Uma tal verdade, se é que existe, esquiva-se sempre perante as limitações do entendimento humano. O que Heidegger nos pretende dizer é que o artista descobre e constitui a verdade servindo-se de um tipo de inteligência particular: o Mundo da sua época e do seu Povo. Pela arte extrai o véu que cobre a existência em bruto por intermédio de um Mundo que, não sendo universal nem invariável, não poderá chegar sobre uma luz absoluta ou intransitória. A obra de arte “cria” a verdade segundo um Mundo que coopera na sua génese.
No entanto, jamais nos é permitido afirmar que a verdade “criada” pela actividade artística precede o emergir da própria obra, como defendem aqueles que reduzem a obra de arte à expressão de uma ideia previamente existente na mente humana. A verdade revelada pela obra de arte nasce precisamente do conflito estabelecido entre o Mundo inteligível e a obscuridade da Terra: “A Terra não surge através do Mundo, o Mundo não se funda sobre a Terra senão na medida em que a verdade advém como o combate original entre a iluminação e a ocultação (...) Instalando um Mundo e fazendo brotar a Terra, a obra é a batalha onde é conseguida a vinda ao dia do ente na sua totalidade, ou seja, na sua verdade”[4].
Esta passagem faz-nos ver a verdade na sua mais radical e plena significação, indicando-nos que a verdade não surge somente como desvelamento (alhqeia), mas sobretudo como aquilo que desdobra o seu ser no combate entre a clareira (Lichtung) e a ocultação, na adversidade do Mundo e da Terra. As profundezas do seu ser deixam transparecer a reciprocidade adversa do velamento e do não‑velamento. Por isso, também ela é não-verdade, em virtude de pertencer ao domínio do “ainda‑não‑desabrochado”. Nesta concepção de verdade estão invariável e inevitavelmente presentes pares de elementos cujos pólos são opostos: o brilho e a obscuridade; o desvelamento e a ocultação. É somente no afrontamento de uma tal adversidade que é conquistado o espaço de abertura. E a partir do momento em que é aberta a clareira no seio do ente, encontramos o lugar próprio de onde pode emergir a criação (Schaffen) artística, o que nos conduz para a concepção de obra como “ser-criado”.


Notas:
[1] Rainer Maria Rilke, “Quadras do Valais”, in Frutos e Apontamentos, pp. 167 - 211.
[2] Martin Heidegger, op. cit., p. 47.
[3] Jean Lacoste, La Philosophie de l’Art, p. 100.
[4] Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, in Caminhos que não conduzem a Parte Nenhuma, p. 61.

Projecto de Dissertação de Mestrado, Parte IV, 3.



3. O Veredicto de Hegel e as Causas da Morte da “Grande Arte”

Verificámos, pois, que a “Grande Arte” abandonou o homem, a partir do momento em que a “Vivência” ‑ Erlebnis ‑ passou a corresponder ao modo como a Arte é vivênciada contemporaneamente pelo homem, fornecendo ao mesmo tempo a chave sobre a sua essência. Tornando-se fonte determinante da apreciação da Arte e da sua criação, a Erlebnis constitui, pois, o elemento em que a Arte morre. Mas este morrer é longo; leva mesmo alguns séculos a consumar-se e o “veredicto” emitido por Hegel, enunciado em três proposições fundamentais, é bem claro a este respeito.
Ora, a legitimação incontornável da apodíctica posição heideggeriana sobre a morte da “Grande Arte”, encontra precisamente em Hegel o seu ponto de enraizamento fundamental, nomeadamente nas breves proposições escritas por este filósofo nas suas Lições sobre Estética, com a plena aprovação de Heidegger:
a) “PARA NÓS, a arte já não figura como o modo supremo em que a VERDADE a si mesma proporciona existência”;
b) “Pode certamente esperar-se que a arte se eleve e se aperfeiçoe sempre mais, mas a sua forma deixou de ser a necessidade suprema do Espírito”;
c) “Em todas estas conexões, a arte continua a ser, do ponto de vista da sua suprema destinação, algo que PARA NÓS JÁ PASSOU”[1].
O pensamento emitido por Hegel ‑ que constitui, em si mesmo, um dos principais pressupostos metafísicos[2] do seu sistema filosófico ‑ surge, para Heidegger, como um autêntico veredicto, inevitável e inultrapassável, embora não possamos deixar de constatar que no período posterior à apresentação, por Hegel, da Estética, no Inverno de 1828/29 na Universidade de Berlim, se assistiu à emergência de variadíssimas obras de arte e correntes estéticas não denunciadas e exploradas pelo filósofo do Espírito Absoluto, nessa obra de referência fundamental para a reflexão e categorização da Arte. Porém, Hegel teve a oportunidade de meditar profundamente e até mesmo de argumentar contra aquilo que considera que a Arte não é.
Assim este “PARA NÓS”, quer dizer, segundo Hegel, do ponto de vista do Sistema, que a Arte perdeu a função metafísica que foi a sua, a saber, a missão de “conciliar a natureza e a realidade finita com a liberdade infinita de pensamento”. “A obra de arte, afirma Hegel, solicita o nosso julgamento”, “não vemos mais na arte qualquer coisa que não esteja ultrapassado (...) submetêmo-la à análise do nosso pensamento”. Numa palavra, “A arte está morta”
À luz do veredicto, a expressão “a arte está morta”, significa que:
a) A Arte não é mais do que um objecto de estudo;
b) A Arte é um momento ultrapassado, pelo qual já não podemos
demonstrar retrospectivamente a sua necessidade;
c) A Arte não é mais o meio no qual e pelo qual nós vivemos e onde estamos totalmente imersos.
Ora, a Arte morre por si mesma, em virtude da lógica do seu próprio desenvolvimento interno (e não apenas por ter cedido lugar à Filosofia): da universalidade que lhe é característica e que a determina enquanto tal, mergulha na mais perfeita particularidade, não se interessando senão pelos detalhes mais acidentais, mais ínfimos, fixando-se apenas nos mais profanos e nos mais mesquinhos, perdendo, por último, a visão de todo o interesse universal.
A Arte morre, por outro lado, porque o artista coloca a expressão da sua subjectividade acima do conteúdo. Procura mostrar simplesmente a sua virtuosidade, o seu talento, no intuito de angariar, da parte do espectador, admiração, através da sua obra. A objectividade da obra perde‑se, dando lugar à emergência da mais pura subjectividade que, por sua vez, se traduz na hipostasiação do artista em detrimento da obra.
Revisitado um longo passado relativo às múltiplas e diversificadas concepções sobre Arte como podermos entender o veredicto de Hegel? Porque afinal a questão de partida heideggeriana permanece: “é a arte ainda uma forma essencial e necessária em que acontece a verdade decisiva para o nosso ser‑aí histórico, ou deixou a arte de ser tal? Ou, apesar da Arte se puder aperfeiçoar sempre, já não constitui mais uma necessidade do espírito, nem sequer o modo supremo em que a verdade a si mesma proporciona existência? Trata-se de saber se a Arte é ainda ou se, pelo contrário, já não é mais um modo decisivo de acontecimento da verdade, se a Arte como instauração da verdade continua a ser uma questão que permanece em aberto. A palavra autorizada de Hegel anuncia, pois toda a problemática heideggeriana sobre a Arte.
Tal como Hegel, Heidegger liga, de um modo verdadeiramente inextricável, Arte e História. Defende a posição segundo a qual a Arte é sempre solidária da destinação historial da época que assistiu à sua emergência. Possui um “habitat natural”, um lugar que lhe é próprio e especificamente determinado, constituindo a sua exposição museica uma expropriação ou uma violentação. As obras de Arte são, para Heidegger, como os corpos celestes para Aristóteles: repousam, intactos e absolutamente imóveis num determinado lugar e não noutro no seio do imenso “Céu das Estrelas Fixas”, porque esse é o seu topoz o seu local natural, pelo que todo o movimento que sobre eles seja exercido não é senão uma violência pura e simples.
É por isso que referindo-se a esses entes peculiares que são as obras de arte, Heidegger manifesta-se, sem reservas, contra a sua exposição em Museus, autênticos supermercados de Arte (veja-se, a título de exemplo, o Museu do Louvre), que extraindo as obras do seu topoz originário promovem-nas a puros objectos de comercialização desenraizados da sua história, da cultura do povo histórico que as viu emergir, não mostrando, por conseguinte, a abertura que abrem no momento inicial da sua instauração. Mas, apesar disso, fala-se em obras de arte imortais, ou da Arte como um valor para a eternidade. Trata-se de uma linguagem sem rigor sobre a Arte, de uma linguagem que não toca no essencial do que a Arte é em si mesma; de uma linguagem que não traduz o pensar essencial sobre a mostração da obra e da sua origem.
Coloca-se exactamente o problema da Arte e da sua temporalidade face a um pensar que obnubilou o ser em favor do ente. “Falar de obras imortais, salienta Heidegger, e do valor eterno da arte terá sentido e conteúdo? Ou tudo isto não são mais do que modos de falar semi pensados, numa época em que a grande arte, e com ela a sua essência, abandonou o homem?”[3]. Falar de obras de arte imortais ou do valor eterno da arte afigura-se, de facto, sem sentido ou conteúdo aos olhos do pensador da Terra e do Ser, que visiona este discurso sobre a arte como resultante de um seu pensamento emerso de uma época em que a “grobe Kunst”, assim como a sua essência já não fazem mais parte da habitação humana pela Arte. Pertencem a um passado em que a Arte e o Homem co-habitavam pacificamente com o Ser, a um tempo original em que a Arte não conhecia a sua própria alienação.
É neste sentido que devemos entender as seguintes palavras de Heidegger: “As esculturas de Égira, no museu de Munique, Antígona de Sófocles, na melhor edição crítica, enquanto obras que estão, são arrancadas ao seu espaço essencial. Por maior que seja o seu nível e o seu poder de impressionar, por melhor que seja a sua conservação, a transferência para uma colecção retirou-as do seu mundo. Mas mesmo que nos esforcemos por suprir tais transferências das obras, indo, por exemplo, procurar no seu lugar o templo de Paestum , ou a catedral de Bamberg, o mundo de que estas obras faziam parte ruiu. A subtracção e a ruína do mundo não são jamais reversíveis. As obras não são mais as que já foram. (...) Como aquelas que foram estão perante nós, no âmbito da tradição e da conservação. A partir daqui permanecem apenas enquanto tais objectos. O seu estar-aí constitui ainda, sem dúvida, uma consequência do primogénito estar-em-si, mas já não é esse mesmo estar-em-si. Este esvaneceu-se. Todo o funcionamento das coisas no mundo da arte, por mais extremo que seja o seu desenvolvimento, e por mais que empreenda tudo em prol das próprias obras, atinge somente o ser-objecto das obras. Mas o ser-objecto não é o ser-obra”[4]
O templo de Paestum ou a catedral de Bamberg ‑ essas extraordinárias sínteses de arquitectura e de escultura ‑ são, para Heidegger, os “exemplares” perfeitos da “grobe Kunst”, face às quais o artista apenas serve de via de aparição do ser da verdade da obra, cujo sítio próprio é sempre aquele que “a priori” lhe pertence e que a obra determina, pois só na abertura aberta pela própria obra o ser‑obra da obra se exerce essencialmente enquanto tal. São obras que definem o manifestar-se da constelação ontológica em que Terra-Céu-Homem-Deus se entrecruzam no ponto em que o Ser se apresenta como Geviert, como a “Quadratura”, como o ponto cardeal das quatro regiões ontológicas, qual entrecruzar-se das quatro regiões do Mundo: o mortal‑divino-celestial-terreno.
O Templo espacializa o aparecer do Deus, deixa transparecer através do espaço aberto entre as suas colunas a figura do divino e o homem intui a figura do seu destino histórico singular como povo, ao mesmo tempo que a Natureza, a Terra no sentido de jusiz, revela a sua silenciosa presença através do mármore ou da pedra e do solo onde se ocultam os seus alicerces. A “grobe Kunst” abre o caminho da essência e este abrir-se é concomitantemente receptivo e criativo. O aberto não é, portanto, coisa, ente, algo Verhanden, mas sim reflexo indicador de alguma outra coisa inescrutável que nele apenas se deixa antever.
Porém, a historialidade da Arte não se limita ao facto de ser solidária de um determinado mundo histórico, relativamente ao qual a obra é contextualização e ancorada: a sua especificidade reside mais no facto de ser uma função fundadora desse Mundo. Dizer que a obra de arte abre um Mundo, significa afirmar que ela abre o destino historial de um povo. A Arte dá-nos o nosso ser-aí histórico e a sua função fundadora é, a um tempo, ontológica e historial. Esta perspectivação faz-nos recusar a concepção de Arte como mimhsiz. Por exemplo, “um templo grego não imita nada. Está ali, simplesmente erguido nos vales entre rochedos. O edifico encerra a forma do deus e nesta ocultação (Verbergung) deixa-a assomar através do pórtico para o recinto sagrado. Graças ao templo o deus advém no templo. Este advento do deus é em si mesmo o estender-se e o demarcar-se (die Ausbreitung und Ausgrenzung) do recinto do sagrado. O templo e o seu recinto não se perdem, todavia no indefinido. É a obra templo que precisamente ajusta e ao mesmo tempo congrega em torno de si a unidade das vias e das relações, nas quais nascimento e morte, infelicidade e prosperidade, vitória e derrota, resistência e ruína ganham para o ser humano a forma do seu destino. A amplitude dominante destas relações abertas é o mundo deste povo histórico. A partir dele e nele é que ele é devolvido a si próprio, para cumprimento da vocação a que se destina”[5]
Esta longa, mas importantíssima passagem, faz-nos ver, de um modo claro, a herança hegeliana patente em Heidegger, aqui traduzida na defesa específica da função essencialmente historial da Arte, segundo a qual cabe à Arte guardar e preservar os traços característicos de uma época histórica determinada, a-presentar, trazer à luz não a vivência de um povo histórico, mas a autenticidade do seu ser, a verdade do seu estar, a determinação do seu destino e vocação, mostrar o mundo de onde nasceu e a Terra a partir da qual se ergueu: “a obra que é o templo, está ali de pé, abre um mundo e ao mesmo tempo repõe-no sobre a Terra que, só, então, vem à luz como solo pátrio (der heimatliche Grund). Porém, sucede que os homem e os animais, as plantas e as coisas estejam aí, reconhecidas como objectos imutáveis, forneçam de seguida, acessoriamente, a ambiência adequada ao templo que um dia se acrescenta ao que lá esta´. Aproximamo-nos muito mais do que é, se pesarmos tudo isso de um modo inverso, como condição, evidentemente, de sabermos ver, antes de mais, como tudo se apresenta de outro modo (...)”[6].
É, de facto o templo enquanto templo que, pelo simples facto de ali repousar, naquele topoz, sobre o chão da rocha, que abre a abertura não só do em si do “lugar natural”, mas do “lugar natural” de todas as coisas que nele estão e são des-veladas. O templo mantém-se ali imutável, assistindo serenamente ao fluxo perpétuo de todas as coisas. É imperturbável e indestrutível, porque o seu lugar está lá, para além de toda a destruição provocada pelo tempo ou pelas mãos dos homens. Permanece, perdura no seu lugar sagrado entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses, entre o céu e a terra, conferindo, de cada vez, identidade às coisas em si mesmas salvaguardadas. As Coisas são no templo: nele encontram o seu rosto próprio, a visão de si mesmas no espaço de abertura pelo templo aberto. Porém, esse espaço de abertura mantém-se, embora não eternamente, mas apenas enquanto o Deus não o abandonar.
Paradoxalmente ao que havia sido dito por Heidegger no que concerne à problemática da intemporalidade da Arte[7], esta tese da essencialidade historial da Arte mostra-nos a vigência a‑temporal das obras de arte, bem como a sua autonomia no que concerne às mutações sociais ou a sua independência no que se refere aos gostos e às vicissitudes próprias da situação histórica concreta em que cada obra foi criada. Como poderíamos ousar pôr em causa a eternidade do ser obra da obra que em si mesmo constitui, por exemplo, o Parténon, bem como tudo o que em si se apresenta, o mundo a que alude mesmo comparando-o com a desarmonia estética da Atenas do século XX?. O Parténon em si mesmo dá-se na sua intemporalidade, na sua historicidade, marcada apenas pelo momento inaugural onde se deu o seu brotar enquanto obra. Está aí, e mesmo em ruínas não deixa de denunciar e enunciar o Mundo e a Terra a que pertence. Continua, apesar de tudo, a afirmar o universo de um povo morto, mas que por si mesmo vive, cuja verdade salvaguarda na sua beleza imortal, deixa transparecer a constelação essencial “ser-homem”, para além de todas as interpretações simplistas e perfeitamente exteriores à sua essência, traçadas pelo mundo grego.
A obra de arte não se pode reduzir à mera re-presentação que os homens façam dela, por mais “objectiva” que seja. A obra enquanto obra de arte está obviamente sujeita às múltiplas e possíveis significações dadas pelos homens que a observam. Todavia, não se limita a elas; transcende-as, mesmo nos seus momentos fundamentais. Como sublinha, com extrema acuidade, Irene Borges Duarte: “Sendo ‘feito’ humano (a obra de arte), partilha com a natureza um modo de ‘estar-sendo’ que se resiste a deixar-se capturar sob as categorias do entender e do desejar humano e se revela mais radical e indefinível que o mero facto de tal feitura ou uso possível. Que é esse ‘algo mais’?[8]. É o que a obra nos faz ver, para além do simples ver; o que o nosso olhar consegue captar para além do simples contorno ou configuração dada pela forma; o que o nosso ouvido consegue discriminar para além do silêncio da obra que fala. A Arte convida-nos a “contemplar pensando”, a extrair o véu da beleza que ocultava a verdade aos “antigos”, hoje afastada pela ciência e pela técnica moderna.
Esta tese de fundação historial da Arte parece ser, por vezes, incompatível com aquela que defende a sua função/fundamentação ontológica. Dificilmente veremos como o quadro de Van Gogh, “Um Par de Sapatos “, pode ser dotado da função de fundamento historial, uma vez que é pintado no seu mundo ‑ caso aceitemos a tese heideggeriana, segundo a qual os sapatos pintados por Van Gogh são, de facto, uns sapatos de camponês ‑ se bem que Heidegger não faça propriamente referência, na sua análise, que explicitaremos no ponto seguinte, à eventual função historial da obra de Van Gogh. Resta-nos continuar a perguntar se a Arte enquanto tal possui ou não uma função de fundação historial, ou se se trata apenas de uma função que pode ser considerada como relativa a determinada época.
Voltamos novamente e sempre à questão essencial do veredicto de Hegel: Será que a Arte ainda pode ser, na nossa época, um fundamento historial, ou teremos que dar razão a Hegel que vê a Arte como uma manifestação passada/ultrapassada do Espírito Absoluto? O re-tomar da questão, neste ponto da nossas investigação, faz-nos compreender que é na revelação artística enquanto tal que poderemos determinar a função de fundamento historial da Arte. De facto, quando Heidegger coloca a questão hegeliana sobre a função historial da Arte, percorre de novo o caminho em busca da demanda da natureza ou essência da Arte, que, aliás, nunca deixa de ser o seu próprio caminho.
Partindo da metafísica, ou melhor, da des-construção do seu pensar estético, Heidegger não deixa de a reinvocar constantemente e este reinvocar torna-se mesmo inevitável. Encontramos, de novo, a nossa, quiçá sua, questão: como evitar que Arte não seja solidária da dissimulação metafísica se tal dissimulação é apresentada como determinante dessa mesma época histórica contra a qual Heidegger se insurge e perante a qual, não aponta propriamente uma saída concreta e concretizável? Como é que a Arte, ainda, pode ser considerada como uma revelação do Ser se se insere numa época caracterizada pelo seu esquecimento, se é, ao mesmo tempo dada como indissociável da essência mais profunda dessa época? Qualquer esclarecimento que tentemos encontrar, no interior do sistema heideggeriano, é sempre vago e desviante.
Não obstante, Heidegger reconhece que a decisão final acerca deste veredicto ainda não foi propriamente proferida. Importa ainda e sempre auscultar, com mais precisão, o que se encontra por detrás deste posicionamento do autor da mais fecunda filosofia do Espírito ou da manifestação do Absoluto.
Por detrás do acto argumentativo de Hegel ‑ figura paradigmática que emerge como o grande fundamento no seio desta problemática, em virtude de ser o autor da mais abrangente meditação, pensada a partir da história da metafísica, que o Ocidente revelou no que concerne à essência da Arte ‑ encontramos uma explicação do pensamento ocidental desde os gregos, o qual corresponde não ao des-velamento da Verdade do Ser, mas à já acontecida verdade do ente. Por isso, se alguma vez a decisão acerca do veredicto de Hegel for pronunciada, sê-lo-á a partir da própria verdade do ente e somente a partir dela.
Enquanto esta possibilidade não se der, o veredicto permanece válido, pelo que teremos de continuar a perguntar sobre a verdade e sobre a revelação da verdade na obra de arte, ou pela possibilidade da sua des-ocultação, de molde a podermos meditar sobre a essência da própria Arte perguntando pela origem da obra de arte na tentativa de fazer desabrochar o “carácter-de-obra” da obra de arte, uma vez que o que a palavra origem significa só pode ser pensado a partir da essência da verdade, cujo significado é preciso determinar no sentido que Heidegger especificamente lhe confere.
Torna-se, de certo modo indubitável, que numa teoria da arte cuja base fundante assenta primacialmente na ontologia, jamais tem lugar a concepção que visiona a obra de arte como algo que é dado por intermédio dos possíveis estádios psicológicos do sujeito, tais como, os sentimentos, os gostos ou a sensibilidade. Mas, não será esta a autêntica e legítima teoria da arte? A única que confere ao artista, ao acto de criação e à obra a sua dignidade essencial?
Uma vez que a instauração da estética psicológica fez brotar a morte da “Grande Arte”, a única que Heidegger é capaz de conceber e consagrar verdadeiramente em toda a sua obra, afigura-se como absolutamente necessário fazer regressar a Arte ao seu sentido absoluto e primacial que se relaciona à verdade mais do que à beleza, institui-la essencialmente como saber (Wissen) e não mais como algo que pertence à esfera do que excita a sensibilidade humana.
Viabilizar tal intenção, que não é senão o pressuposto fundamental da tese heideggeriana, consiste em fazer voltar a obra e o artista à sua origem - a Arte - procurar a essência desta na verdade e não em qualquer produção que se oponha à natureza entendida a partir da palavra grega original, isto é, da jusiz..

[1] Martin Heidegger, Ukw, in Holzwege, p. 68.
[2] É exactamente a articulação deste pressuposto metafísico com os outros três que o antecedem que permitem ao filósofo o proferimento de uma tal sentença. Para Hegel a Arte:
1. É um saber: “Existe na arte uma espécie de conhecimento do Espírito Absoluto”. Este conhecimento é somente imediato e não intuitivo, pelo que a arte atinge a verdade absoluta, o em si e por si, por intermédio de uma apreensão dada sob a forma directa ou de sentimento. Por isso, a arte pode ocupar no sistema hegeliano o mesmo lugar que a religião e a filosofia, embora e contrariamente a estas permaneça um saber directo que se manifesta no sensível.
2. É dotada de unidade: a) Do sensível e do espiritual; b) Da natureza e do Espírito; c) Do exterior e do interior.
Daqui resulta que a obra de arte é compreendida como a incarnação de um conteúdo do pensamento numa forma sensível, pelo que a aparência artística não é senão uma ilusão que, contudo, ao invés de ser qualquer coisa de inessencial, constitui o momento essencial da essência da arte.
3. Tem um conteúdo: a religião, o divino. Os deuses ou o Deus são o centro a partir do qual gravita a arte, pelo que o desenvolvimento da arte segue o desenvolvimento da religião, segundo os seus três grandes momentos: a religião da natureza, correspondente à arte simbólica; o politeísmo da religião grega, ilustrado pela arte clássica e a religião cristão, manifestada pela arte romântica, onde a arte propriamente dita encontrar o seu fim: é a religião cristã que torna possível a síntese suprema do Deus-Homem ou do Homem-Deus, a síntese do sensível e do espiritual na interioridade. A era do cristianismo trouxe,por isso, consigo o anúncio do fim da arte, na medida em que, nela, o absoluto subjectivo se revelou tão interiormente que fez escapar qualquer possibilidade de representação sensível, essencial à arte enquanto tal.


Notas:
[3] Martin Heidegger, Ukw, in Holzwege. p.667 - 68.
[4] Martin Heidegger, Ukw, in Holzwege, pp. 26-27 ( o sublinhado é nosso)
[5] Martin Heidegger, op. cit., pp. 27 - 28.
[6] Idem, p. 28.
[7] Cf. op. cit., “Nachwort”, p. 66.
[8] Irene Borges Duarte, op. cit., p. 65 (o sublinhado é nosso).

Projecto de Dissertação de Mestrado, Parte IV, 2.


2. A estética enquanto reflexão sobre a arte e o artista: em torno do carácter de “ser-obra” da obra

Se se procura descortinar a origem da obra de arte, a sua proveniência essencial, então o que indubitavelmente se persegue é o modo próprio de desdobramento do ser da obra enquanto ente (Seiend) do que é. Ora se a “trindade” obra de arte ‑- Arte ‑- artista não torna a inquirição futurível (pois que inevitavelmente se cai em círculo vicioso), e nem a determinação da essência da Arte é possível através da contemplação comparativa de distintas obras ou da dedução do que a Arte seja a partir de conceitos “superiores”, inevitável é o procurar deslindar o que seja a obra de arte na sua pura realidade. Trata-se, deste modo, de procurar destilar as propriedades da obra de arte em relação a outros entes, pois o horizonte em que primeiramente a obra nos surge é o das coisas que são, havendo que relevar se a obra é coisa (Ding), se diz outra coisa além da coisa que é (allo agoreuei), e é então alegoria, ou se, sendo coisa, a ela está re-unido, adstrito algo de outro, se a obra está em vez de um outro, caso em que a podemos caracterizar como símbolo (sumballein). Aliás, “Alegoria e símbolo fornecem o enquadramento em cuja perspectiva se move desde há muito a caracterização da obra de arte. Só essa unidade na obra, que revela um outro, essa unidade que se reúne como algo de outro, é que é o elemento coisa (Dinghafte) na obra de arte”[1].
Revelando agora a dimensão de tudo o que é de algum modo aparecente, e fazendo-o procurando conectar os termos obra-coisa (Ding-Werk), cedo a reflexão heideggeriana estabelece que o que na obra de arte se joga não cabe na caracterização tradicional (metafísica) do conceito de coisa em sua tríplice dimensão:
a) - A coisa como o suporte (to upokeimenon) de prioridades ou qualidades (ta snmbebhkota) distintivamente marcantes, que fazem com que ela seja este ente determinado e inconfundível. Segundo esta primeira interpretação, a obra de arte não é senão o a-juntamento de qualidades específicas.
b) - A coisa é definida como sendo a unidade de uma multiplicidade de sensações. Neste sentido, a obra assume o qualificativo de aisqhton, que significa o que é perceptível pela sensibilidade, sendo por intermédio dos orgãos dos sentidos que ela se apresenta como presença (Anwesen).
c) - A coisa reduz-se a uma matéria enformada, o que quer dizer que toda e qualquer obra brota como a pura síntese da matéria (ulh) e da forma (morjh). O “lado‑coisa” da obra é manifestamente a matéria de que é composta, a qual se destina a ser enformada pela mão humana. A matéria é o suporte da acção e da criação artística. E a obra de arte não é senão, à luz desta conceptualização, uma matéria enformada, disposta à deleitação sensível do espectador. O artista, por sua vez, é o mero enformador da matéria bruta , consistindo a criação no simples acto de dar forma.
Ora, jamais o complexo matéria-forma, que tem fundamentado toda a Estética Ocidental tão amplamente criticada por Heidegger, faz ressaltar a originariedade da Arte que a obra em si mesma encerra. Aliás, mlh e morjh não são determinações inerentes à essência da obra de arte enquanto tal. Se entendermos por morjh aquilo que dá contorno, que delimitando faz emergir o rosto (eidoz) numa matéria, verificamos que a forma determina a qualidade e a coisa dessa matéria, o que quer dizer que a ligação entre estes dois elementos visa um determinado fim (teloz), delimitando-se esse teloz à utilidade (Dienlichkeit) do objecto.
O complexo matéria-forma faz-nos mergulhar no campo da mais pura tecnicidade, do “instrumentum” (Einrichtung), sendo o ente submetido a um tal complexo não o produto de uma criação, mas de uma fabricação. Demonstra-se, assim, como a dupla matéria-forma, tem a sua origem na essência do útil, entendido como aquilo que é utilizado em vista de um determinado fim, e não mais na obra, enquanto obra de arte. Mas, será que a obra de arte se apresenta, na sua radical essencialidade, como um simples produto de uma qualquer fabricação? Reduzir-se-á a obra de arte a um objecto cujas características são a utilidade e o uso? Para compreendermos o alcance destas questões é preciso distinguirmos, antes de mais, três tipos de entes: a coisa (Ding), o útil (Zeug) e a obra (Werk).
Se estas três determinações insultam a coisa mais do que a captam na sua coisidade, pois que não a apreendem na sua própria incontornabilidade, isto é, no facto de brotar originariamente para a patência a partir do ser, trata-se agora de enveredar por outro caminho e descortinar se o ser-coisa da obra pode apreender-se no ser utensílio (Zeug), esse ente particularmente mais próximo do homem porquanto advém à patenteação por nossa própria produção. Porém, a essência do produto, não reside na sua produção, aspecto pelo que se assemelharia inevitavelmente à obra de arte, mas na sua utilidade, conferida pela sua solidez intrínseca, a sua “fiabilidade” (Verlässlichkeit). O próprio do utensílio é o ser fiável, o poder contar-se com ele, o assumi-lo como o ente-à-mão que é, disponível para o uso do homem. Transparece, pois, que a essência do utensílio não repousa no ser do mesmo, mas na sua reportação à postura existencial do Da-sein, enquanto ser-no-mundo.
O ente enquanto Werk deve ser entendido como distinto dos outros dois tipos de entes, embora manifeste um certo parentesco com eles. É evidente que a obra também é um produto, na medida em que, tal como o útil, é o resultado de uma operação efectuada pela mão humana. Porém, é necessário salientarmos que não estamos a referirmo-nos, em ambos os casos, ao mesmo tipo ou conceito de produção. A produção do útil reduz-se à simples fabricação entendida em sentido meramente tecnicista. Ao invés, a pro-dução (Her-vor-bringen) da obra de arte é entendida como criação, significando criar, trazer à luz o que ainda não se encontra em estado de presença (Anwesen).
A criação, no entanto, jamais é dada como uma actividade artesanal: o artista não é propriamente o artesão, embora os gregos tenham utilizado o termo tecnh quer quando se referiam aos artistas, quer quando se referiam aos artesões, atribuindo-lhes uniforme e indistintamente o qualificativo de tecnithz, parecendo, assim, determinarem a essência da criação a partir do lado artesanal-manual da obra. De notar que tecnh, não significa, neste contexto, nem trabalho manual nem trabalho artístico, nem sobretudo, trabalho técnico, no sentido modernamente atribuído à expressão. Tecnh é pois esse modo de fazer ver o que é, de apreender a presença daquilo que se apresenta,um modo de alhqeia, ou seja, de eclosão do ente.
A tecnh é um modo de alhqeia, ao permitir o desvelamento do que não se produz por si mesmo; desoculta o que ainda não é dado a descoberto perante nós. E é precisamente como desvelamento e não como fabricação, que tecnh é uma pro-dução (Her-vor-bringen). A pro-dução assim apresentada é, radicalmente, poihsiz, que significa fazer abrir a floração, promover o desabrochar (Aufgehen) do ente na sua nudez primacial. Segundo esta perspectiva o “criador” é o poihthz, quer dizer, aquele que faz emergir a verdade, definindo-se a “criação”, por sua vez, como um acto de verdade, e não mais o tecnithz, aquele que fabrica produtos.
Porém, enquanto dada como algo que se basta a si mesma, a obra assemelha-se à simples coisa, repousando plenamente numa espécie de gratuitidade que a sua acção de brotar natural lhe confere. Apesar disso, não nos é permitido qualificar as obras de arte entre as simples coisas. E eis-nos chegados a uma primeira conclusão do que a obra não é: a obra de arte não pertence ao domínio da simples coisa, entendida segundo os moldes de interpretação precedentemente discriminados, nem ao do produto, compreendido como o resultado de uma fabricação. Se a obra de arte por si própria tem suficiência, segue-se que a sua essência jamais pode ser determinada a partir do ser do produto, sujeito à usura que lhe confere a submissão da sua essência às finalidades do homem.
Para evitar que a perspectivação do que seja a obra de arte, a partir da des-construção do conceito de coisa constitua um insulto (Ueberfall) à obra, trata-se de eliminar tudo o que é susceptível de obstar à nossa acessibilidade a própria obra ‑ incluído os nossos enunciados sobre ela ‑ e, primacialmente, fazer revelar a constitutiva instância da obra, abandonando-nos à sua presença imediata (unverstelltes Anwesen). Trata-se pois de silenciar o homem para deixar falar a obra: “Nada mais fizemos do que colocarmo-nos em presença do quadro de Van Gogh. Foi ele que falou. A proximidade da obra transportou-nos repentinamente para um outro lugar que o aí onde tínhamos o costume de estar”[2].
Vemos assim que o que parecia constituir o nexo interpretativo conducente à determinação da origem da obra de arte, a abordagem da realidade “coisal” (das Dinghafte) da obra , é substituído por outra perspectivação tendente a revelar o que está em obra na obra, ou seja, esta deixa de ser questionada na sua espessura ôntica para ser apresentada como um topoz indicador de outra presença, como instância mostrante. Este salto, significará, por sua vez, a eleição de um novo nó problemático que colocará a obra de arte em directa confrontação não já com o seu estatuto de coisa, mas com a dimensão fundamental da verdade. Se aqui se adivinha o abandono de uma “hermenêutica metafísica” e a abertura a outros espaços de perspectivação, conexos com a noção de verdade, mais tarde veremos como o abandono da inquirição pela onticidade da obra e, por consequência, sua propriedade e id-entidade, levantará, no seio da perspectivação heideggeriana, algumas dificuldades. A resolução destas implicará, entre outros aspectos, a cessação da autonomia do sujeito e do processo de criação artísticos enquanto objectos de investigação, com o intento de pensar um novo conceito de Arte que, livre tanto de funções miméticas como expressivistas, e, por conseguinte não mais adstrita ao real já dado como à “experiência-vivida” (Erlebnis) do sujeito, se afirma antes como momento verdadeiramente instaurador e poético.
Em grande parte, o Posfácio e a conferência que lhe é adstrita movem-se em derredor desta des‑construção que não é senão a des-construção da estética da Erlebnis ou da concepção de Arte como “experiência vivida”. Por detrás da concepção heideggeriana está a convicção de que uma interpretação metafísica da obra de arte, longe de a esclarecer na sua essência e origem, antes a perverte na sua constitutiva realidade. Correlato da nossa postura filosófica ocidental, este tipo de perspectivação metafísica da Arte, que o autor, aliás sem suficiente problematização, faz identificar com a Estética, procuraria fazer da Arte uma manifestação cultural sem mais, sempre reconduzível ao homem, procurando dilucidar-se uma caracteriologia que afinal não é mais, para Heidegger, do que a aplicação de valores da civilização, de padrões de auto-avaliação importados do saber teórico, que em nada esclarecem a essencial radicação da obra de arte, de todo descurando a sua fundamentação na problemática ontológica, verdadeiro nexo dinâmico da reflexão heideggeriana.
Segundo o ponto de vista em que o autor se posiciona, a Estética procuraria, então, esclarecer as modalidades de patenteação e juízo do belo, bem como a relação intrínseca insuperável entre os termos autor ‑ obra de arte ‑ espectador, descentrando, deste modo, a reflexão da própria realidade da obra, e esquecendo a sua ancoração fundamental ao plano de fundo despoletador da sua existência própria. Por isso “devemos dar ao termo ‘arte’ e àquilo que ele quer designar um novo conteúdo, encontrando primeiro uma posição originária quanto ao ser”[3].
O afrontamento desta problemática indica-nos que deveremos prescindir, nas nossas abordagens da concepção metafísica da Arte que tomou, no seio do Pensamento Ocidental, o nome de Estética, antes de mais, porque a Estética considera o obra de arte como um simples objecto da percepção sensível, como um objecto da aisqhsiz, isto é, toma a obra “a priori” e definitivamente como um objecto disponivelmente dado. Ao colocar a questão deste modo, a Estética parte não mais da obra, mas do sujeito que exerce o seu olhar sobre o que lhe é sensivelmente dado, e sobre o qual deverá exercer um juízo estético ou, por outras palavras, desenvolver um acto contemplativo. Questionar a partir do sujeito significa não deixar a obra ser obra, mas representá-la e apresentá-la como uma coisa susceptível de provocar em cada um de nós quaisquer estados de alma.
Esta percepção sensível, que Heidegger rejeita incessantemente por não se enquadrar no seu esquema conceptual que postula a passividade do sujeito contemplativo, é denominada pelo termo Erlebnis, que significa “experiência-vivida”, a partir da qual a Estética tradicional pretendia dar a conhecer a essência da Arte. Todavia, jamais o modo como a Arte é vivida pelo homem pode produzir o esclarecimento da sua essência. Considerando-se que a “experiência-vivida” é o princípio de autoridade não somente para a fruição estética, mas igualmente para todo o acto de criação enquanto tal, reduzindo-se, assim, toda a actividade artística à Erlebnis, mergulhamos numa vivência plenamente ilusória, não nos apercebendo que é a “experiência-vivida” o elemento no seio do qual a Arte é lançada na sua própria agonia.


Notas:
[1] Idem, p. 4.
[2] Op. cit., p. 36. Van Gogh confirma a tese heideggeriana quando afirma: “Bem, a verdade é que nós só podemos fazer as nossas pinturas falar” (Van Gogh, “Carta a Theo, Junho de 1?80”. in William Feaver, Van Gogh, p. 24)
[3] Martin Heidegger, Introdução à metafísica, p. 140.