quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Plano de Tese de Doutoramento: Apresentação, Objectivos e Linhas Gerais de Investigação

Projecto de Tese de Doutoramento

Título: «Um Poética da Música em Martin Heideigger: Os Domínios da Poesia e o Canto dos Poetas»»

I – Apresentação do Projecto

§ 1. A obra de arte é, para Heidegger, o ente da existência metafísica que clama de novo resposta ao espanto originário. É neste sentido que o filósofo pode afirmar a sua concepção da Arte como origem, radicando de modo insigne, pelo qual a verdade tem acesso ao manifesto e à história, a essência mesma da Arte. Coetânea desta adveniência da verdade, a Arte tem também, porém não só ela, essa dimensão fundamental segundo a qual é, eminentemente um «mostrante», um Poema (Dichtung). Capacitada para se «jectar» na patenteação, no manifesto, ela é pro-jecto de clareira, despoletadora da própria abertura em que o ente se dá na sua verdade.
1.1. Nisso de fazer vir ao aberto o ente enquanto ente des-velado, a Arte é Poesia, um fazer mostrante que dilucida o modo como o ser possibilita um «jectar» para o manifesto, de acordo com o qual o aberto da verdade se destina a ter estância no ente. Porquanto, a um tempo, acolhe a dádiva da verdade posta em ente e explicita o salto enigmático do ser ao ente, a obra está no topoz da diferença ontológica e da fundação de tudo o que é. Finalmente, na medida em que é concomitante ao originário, e enquanto advento da verdade do Ser que faz apelo para ele, a obra de arte ganha o seu lugar entre os entes mais «mostrantes» da existência.

§ 2. Porém, e a Arte é Poesia e, nisso, mostra, a quem o faz? Qual o ente que se demanda pelo porquê de tudo assim ser, e acolhe essa mostração como detendo um sentido? Heidegger diz-nos: «A essência da arte, é o Poema. A essência do Poema, é a instauração da verdade. Esta instauração, nós tomamo-la aqui num triplo sentido: como dom, como fundação e como inicial»[1].
2.1. A própria assumpção da Arte como Poesia, como «fazer mostrante», cedo mostra a necessidade de acolher, no questionamento heideggeriano sobre a Arte, a temática antropológica, e a condução da abordagem ontológica a essoutra, não menos fundamental, da postura metafísica do Da-sein e da inquirição deste sobre o Sentido do Ser, qual ponto nodal que marca e perpassa este pensar assim manifesto.
2.2. Numa tematização da Arte a partir dos conceitos de «instauração» e «Poesia» a noção de ‘criação-adveniência’ da obra, relevada tão somente na sua dimensão ontológica é manifestamente insuficiente. Há, pois, que relevar outra interpretação que sobreleve a figura do homem e o seu próprio estar metafísico: «No entanto, toda a instauração não é real senão na salvaguarda. Assim, a cada modo de instauração, corresponde um modo de salvaguardar»[2].
2.3. O que iremos desenvolver, sobre a relevância do homem na concepção heideggeriana de Arte e, centralmente, de Poesia, vai, por assim dizer, interseccionar o pano de fundo de uma perspectivação ontológica, havendo que representar nesse espaço comum dos dois círculos interseccionados, respectivamente, as posturas ontológica e metafísica, que, afinal, Heidegger nunca abandona, mesmo nesses momentos inaugurais de des‑construção do pensamento ocidental. Apenas desse modo se torna possível compreender a Arte como instauração na sua tríplice dimensão de dom, fundação e inicial.

§ 3. Se, por um lado, temos que é iniludível, para o filósofo, o facto de que o homem, enquanto artista, não explica a obra na sua radicalidade, porquanto a iniciativa do «fazer‑obra» pertence à verdade, temos, por outro lado, que a própria assumpção desta última como des-velamento só se torna compreensível numa postura em que há Da-sein, esse ente para quem a verdade faz sentido.
3.1. Há, assim, uma concepção inicial que deve ser, dir-se-ia, superada, a saber, a que coloca como categoria mais elevada de compreensão da Arte, a autonomia da obra em relação ao próprio horizonte do humano, ou, como diz Heidegger: «Não é o N. N. fecit que quer ser trazido ao conhecimento de todos; é o simples factum est que quer ser mantido no aberto; isto: que aqui adveio uma eclosão do ente, e que ela advém ainda, precisamente enquanto que este ser-advindo; isto: que uma tal obra é, de preferência a não ser. Este choque: que a obra seja uma obra, e a incessância da sua percussão dão à obra a constância do seu repouso em si mesma. É justamente aí onde o artista, o processo e as circunstâncias da génese da obra permanecem desconhecidas, que este choque, que este quod do ser-criado ressalta o mais puramente da obra»[3].

§ 4. Se na origem, o humano se desvanece, a própria instauração da obra no aberto não pode separar-se desse ente que, perante a sua instância, sente o ‘choque’ e a ‘percussão’ que dela emana. Instauração no seio do aberto e relevância da questão ontológica, sem dúvida . Porém, se ser obra é ser um ente mostrante, a relevância da sua dimensão poética só se torna possível se, aduzido ao momento instaurador, se coloca esse outro em que o Da-sein, enquanto ente que mais insignemente acolhe o Ser, se inquire pelo seu sentido, é iniludível que a Arte na sua essência, na sua origem, é instauração poética da verdade.
4.1. Todavia, a essência da Dichtung, da Poesia, não se esgota nesse momento originário, qual referente de uma concepção ontológica nova, mas antes suscita, e de modo não menos relevante, um novo modelo interpretativo do ente na sua totalidade.
4.2. Sabemos, pois, que ao homem desgarrado da postura metafísica ocidental, será impossível “guardar” tanto um hino de Hölderlin como uma ópera de Mozart ou o toque genial do piano de Glen Gould. E isto porque, não se tendo na verdade que tais obras desdobram, a instituem no espaço próprio de tais mundividências, e assim, desenraízam de tal modo a obra que esta não pode mostrar o verdadeiro inicial e in-habitual de onde brotou.
4.3. Desenraizar a obra do seu Mundo, eis em que consiste roubar-lhe a poesia: «Enquanto posição em obra da verdade, a arte é Poema. E é não apenas a criação, mas também a guarda da obra que é no seu modo próprio, poemática; pois uma obra não permanece real enquanto obra senão nos demitirmos nós mesmos da nossa banalidade ordinária e entrarmos naquilo que a obra abriu, para assim conduzir a nossa essência a ter-se na verdade do ente»[4].

§ 5. Manifesta é, nesta ordem de ideias, a assumpção do homem enquanto ente que, no fulgor da obra, se transporta para uma nova ordem de todo distinta da que configura a sua existência quotidiana. A obra é também uma via, um poro, no qual o homem se en-via para a co-respondência de aquilo que a própria obra abriu, a saber, a mesma fonte matricial onde se re-conhecem a origem da obra e a essência do homem.
5.1. A relevância da obra como mostração poética ganha a sua concretude no conluio, em uma mesma matriz, do homem e da obra enquanto mostração da verdade do ente. Só uma tal co-respondência num momento originário torna possível ao Da-sein, o re‑conhecimento do que, na obra, o concerne a si e ao sentido que confere ao seu existir historial: «O projecto verdadeiramente poemático é a abertura daquilo em que o Dasein está, enquanto historial, já arriscado»[5].

§ 6. Irradiação mostrante de um Mundo que desdobra a sua ordem a partir da relação do Da-sein ao aberto do Ser, mas também ente capaz de possibilitar o total desgarramento do homem em relação ao que lhe é familiar e habitual, transportando-o para um outro aí que não aquele em que tem o costume de estar, a saber, para o topoz originário, em que ele mesmo devém ser-aí, eis como podemos caracterizar a poética da obra de arte.

§ 7. Sob a base do terreno filosófico em que nos situamos, é manifesto que a tematização heideggeriana sobre a Arte e a Poesia não acolhe a possibilidade do que poderíamos chamar uma «hermenêutica criativa», privilegiante de um paqoz estético. O choque que provoca a existência mesma da obra poética não é desencadeado por um viso desta que, pela sua força, provocaria prazer ou outra qualquer emoção.
7.1. Não é, de facto, aí, que reside para Heidegger, a verdade da experiência estética, sendo esta negada se assumida numa dimensão que exclusivamente a reconduza à aisqhsiz. Todavia, parece-nos, que se não é dessa aproximação sensível à obra que provém o poder desgarrante e “qauma-tico” desta, não deixa o filósofo de conceber uma certa “disponibilidade receptiva” que poderíamos assemelhar a um acto de escuta, numa ressonância que aproxima a poética da obra a essa outra, de todas a mais mostrante, residente no poder nominativo da palavra.
7.2. A postura do Da-sein perante a obra ‑ e o combate que se trava nela entre clareira e retraimento, é um estar co‑respondendo ao que na obra silenciosamente se diz, não propriamente porque a obra “fale”, mas porque o homem incontornavelmente lhe acolhe o apelo, apelo que não o do ente-obra mesmo, mas do que nele se oferece: o brotar longínquo do ente que a obra de arte dá a ver.

§ 8. Detentor do poder da palavra, esse meio conivente do ser de cada ente, o homem é perante a obra desenraizado da marca quotidiana do ente, para, numa espécie de nostalgia, sentir a dor que lhe provoca a proximidade desse longínquo: o Ser que o ser-obra enquanto tal lhe revela.
8.1. Querer e saber, eis as características do homem como ente disponível para a escuta da obra enquanto instância em que o ser apela: «Querer, é com toda a sobriedade o pôr em liberdade que possibilita ir para lá de si mesmo em existindo e em se expondo à abertura do ente tal como esta se manifesta na obra. (...) A salvaguarda da obra é, enquanto saber, a calma e lúcida instância na e-normidade da verdade advindo na obra»[6].
8.2. A obra de arte poética é, nesta conformidade, lugar em que se potencia o acto de transcensão do humano em relação ao familiar e habitual na prossecução de uma verdade mais primeira. Conceder a própria possibilidade de excedência em relação à sua vida interior, na via do horizonte em que o homem co‑responde mais ao seu ser, a saber, à verdade, eis a dádiva principal que a obra poética concede ao Da-sein.

§ 9. A instauração da verdade como começo e a Arte como Poesia, é uma das teses a que dedicaremos, especialmente, a nossa atenção. Esta ideia, latentemente presente no corpus filosófico heideggeriano, emerge, neste contexto, com particular acuidade. Faz decorrer essa outra tese que formulamos no seguinte enunciado: a Arte, na medida em que deixa advir, com a máxima fidelidade, a verdade do ente no seu ser é, por excelência, Dichtung, Poema. Esta é uma das teses a que naturalmente chegámos, aquando da nossa auscultação da essência da Arte.
9.1. Como observa Heidegger, «a verdade como clareira e ocultação acontece na medida em que se poetiza. Toda a arte, enquanto o deixar-se acontecer da adveniência da verdade do ente como tal, é na sua essência Poesia. A essência da arte, na qual repousam simultaneamente a obra de arte e o artista, é o pôr-em-obra-da-verdade. A partir da essência poetante da arte acontece que, no meio do ente, ele erige um espaço aberto, em cuja abertura tudo se mostra de um outro modo que não o habitual. (...) a poesia é aqui pensada num sentido tão vasto e, ao mesmo tempo, numa união essencial tão íntima com a linguagem e a palavra que tem de permanecer em aberto se a arte, e mais propriamente em todos os seus modos, desde a arquitectura à poesia, esgota a essência da poesia».[7]

§ 10. Correlativamente, tornaremos visível a peculiar concepção heideggeriana de Poesia. Não conceberemos a Poesia como um errante inventar do que quer que seja, ou como um oscilar permanente e perpetuante da mera representação e imaginação no irreal. Pensaremos essa Arte da Palavra, enquanto projecto clarificante, como aquilo que se desdobra na des-ocultação, como um modo do projecto clarificador da verdade, como obra suprema da Linguagem.
10.1. E, ainda, como o lugar privilegiado da instalação da Geviert, noção em derredor da qual gravita o posicionamento onto-artístico do nosso autor, o pensador do Sentido do Ser que se mostra pela Linguagem. Pensar a Linguagem, ou mais propriamente, a essência da Linguagem na sua relação com a essência da Poesia, torna-se absolutamente imperativo neste passo da nossa investigação.

§ 11. Numa primeira abordagem, verificaremos que o conceito heideggeriano de Linguagem não é sinónimo de uma certa forma de expressão oral e escrita do que importa comunicar, como o que transporta apenas, em palavras e fases, o patente e o latente visado como tal, mas como o que nomeia pela primeira vez o ente, sendo este nomear o que trás o ente à palavra e ao aparecer. Heidegger apresenta-nos uma concepção absolutamente singular de Linguagem, ao conceber este dom do Da-sein como «dizer projectante» que é, por sua vez, e primacialmente, Poesia.
11.1. Clarificar essa expressão, «dizer projectante», é imprescindível para compreendermos a noção de Poesia apresentada pelo nosso filósofo: a fábula da des-ocultação do ente, a fábula do Mundo e da Terra e do espaço de jogo do seu combate, o lugar de toda a proximidade e afastamento dos deuses.
11.2. Este «dizer projectante», pelo qual definiremos, num primeiro momento, a Poesia, prepara o dizível e faz ao mesmo tempo advir o indizível do Mundo. É por um tal dizer que comungam, ao mesmo tempo, para um povo histórico, a sua essência e a sua pertença à história do Mundo.

§ 12. Daqui emerge a tese que nos permite entender porque é que a obra de arte ao abrir o Mundo e ao fazer assomar a Terra, instaura-se, ela-mesma, num espaço de combate, onde se traça a intimidade da co‑pertença dos combatentes e de onde ressalta a harmonia dos contrários.
12.1. É este o espaço sagrado e consagrado dos deuses, onde se encontra entre estes e os homens, o artista, e mais particularmente, o Poeta, o obrante da Poesia (Dichtung): a arte da palavra pela qual se celebra a essência da própria Arte; a Arte consagrada entre todas as artes pelo seu nomear inaugural e fundante, pela sua proximidade com o sagrado, pela sua consagração e salvaguarda da Terra, pela sua dimensão essencialmente historial que transporta, a um tempo, a voz de um Povo e a voz do Deus.

§ 13. Torna-se claro que por Dichtung não se entende, em sentido próprio, a poesia enquanto género literário, pois o Poema jamais é tomado como o resultado de uma mera “vagabundagem do espírito”, ou como um deixar fluir da imaginação até terminar na irracionalidade. Dichtung, enquanto verdadeiro Poema, é um projecto de iluminação na abertura, na Lichtung, na clareira, do Ser.

§ 14. A Poesia é, radicalmente falando, a obra suprema da Linguagem. A reflexão heideggeriana sobre a linguagem não é mais uma mera perspectivação da relação possivelmente patenteada entre a linguagem e a realidade, sobre a propriedade ou impropriedade da mesma para descrever as coisas, nem tão-só uma reflexão sobre um "aspecto" do estar-aí do homem, do seu Da-sein.
14.1. Essa reflexão é a forma mais eminente da experiência e da expressão da própria realidade, já que é na linguagem que se dá a abertura do Mundo, que se dá o ser das coisas e, por isso, o verdadeiro modo de perscrutação daquilo que se afirma como existente só pode ser atingido através do auscultar do significado primordial das palavras: «Die hier waltende Fragwürdigkeit sammelt sich dann an den eigentlichen Ort der Erörterung, dorthin, wo das Wesen der Sprache und der Dichtung gestreift werden, alles dies wiederum nur im Hinblick auf die Zusammengehörigkeit von Sein und Sage», quer dizer, «o que aqui se impõe como digno de questão reúne-se então no genuíno lugar da explicação, onde se toca a essência da linguagem e da Poesia, tudo isto, uma vez mais, tendo apenas em vista a pertença recíproca do ser e da palavra»[8].

§ 15. Consequentemente, verificaremos que as coisas não são fundamentalmente coisas presentes no mundo‑exterior, mas na palavra que as nomeia originariamente e as torna acessíveis, até mesmo na presença espacio‑temporal. As coisas são, no sentido do recolectante "fazer-morar", só na linguagem que é essencialmente Poesia: eis como deveremos entender a afirmação segundo a qual é a palavra que "torna coisa" (be-dinget),a coisa (Ding).
15.1. Se quisermos compreender este modo de ser da coisa na palavra devemos pensar, antes de mais, no gosto heideggeriano pela etimologia que é justamente uma maneira de remontar, através das vicissitudes e das conexões das palavras, à dimensão autêntica, ontológica, da coisa em si mesma nomeada.

§ 16. A figura etimológica, a escavação do significado a partir das raízes verbais e da história das palavras é, na sua mais plena acepção, uma "emergência", um “des-ocultamento", ou se preferirmos, um movimento para a luz..
16.1. Qualquer investigação séria sobre o ente deve adoptar, como ponto de vista, as considerações linguísticas, em virtude da linguagem se apresentar como a chave que abre a porta do des-velamento do Ser, do Homem e do Mundo.
16.2. A palavra essencial, a palavra de origem, é um caminho (Weg), ou melhor, o caminho privilegiado que nos permite pensar, através do depoimento existencial que transmite, o Ser do ente, quer dizer, o Ser daquilo que realmente é, amiúde obnubilado no nosso discurso quotidiano, no seio do qual as palavras perderam o seu referente primordial, remetendo apenas umas para as outras e não mais para o Ser.
16.3. Deparamo-nos, todos os dias, com discursos vazios de conteúdo, pois o modo de significação do que é, emaranha-se na sequência mais ou menos lógica de palavras, no encadeamento de um conjunto de fonemas mais ou menos articulados, mas que perderam de vista a sua veraz significação e alcance ontológico.
16.4. Ora, as coisas só são, realmente, enquanto se dão na proximidade do próprio Ser, tomado como aquilo que funda e abre toda a abertura histórica, embora ele-mesmo não se reduza a uma tal abertura.

§ 17. Perspectivando à luz da tese heideggeriana as vivências quotidianas do «Homo Superfulus», que habita cada vez mais em cada um de nós, não poderemos deixar de afirmar que a palavra e a linguagem jamais são invólucros onde as coisas podem ser empacotadas para o comércio daqueles que as utilizam. Não se podem consumir do mesmo modo que os triviais produtos que a sociedade consumista hodierna nos apresenta e nos "pressiona" a angariar nos tão frequentados hipermercados, onde as palavras, e os livros que as encerram, são comercializadas de modo similar, e quiçá com o mesmo estatuto, de qualquer produto doméstico.

§ 18. O pensamento ocidental esqueceu a máxima fundamental: é na linguagem e, portanto, nas palavras, que as coisas nascem e verdadeiramente são. Afirmar a existência, dizer que uma coisa é, significa falar do ser das coisas, como somente a Linguagem originária pode fazê-lo. Impõe-se-nos, por isso, a refutação da tese que defende a existência de uma arbitrariedade entre o que se diz e o que é, ou seja, entre o Dizer e o Ser, porque em cada sentença que proferimos o Ser é efectivamente nomeado.
18.1. Recusaremos, por conseguinte, a tendência de certo modo nominalista da sociedade contemporânea, particularmente registada depois do advento da Publicidade, que tem feito crer ao comum dos mortais – cujas mentes errantes vagueiam por este universo de quase arbitrariedade semântica ‑ que as coisas ou os objectos da experiência não têm realidade intrínseca fora da linguagem que as descreve e as faz falar.

§ 19. A linguagem opera o des-velamento das significações do Mundo, não havendo, portanto, dois planos: o do percebido e o do conhecido; o do falado e o do expresso. A palavra não introduz um sentido num conteúdo. Ao invés, é o conteúdo que se revela significante na linguagem.
19.1. É definitivamente forçoso destruir a perspectiva metafísica: a linguagem não se torna significante a partir dos objectos compreendidos pelo pensamento e significados, em seguida, pelas palavras; são, antes, os objectos que adquirem a sua plena capacidade de significação a partir da linguagem falada.
19.2. O sentido do Discurso, que Heidegger define em SuZ como sendo «a articulação significativa da compreensão do ser-no-mundo no sentimento de situação»[9], nunca é construído, mas sempre des‑coberto. O mundo mostra-se-nos investido de significações utilitárias e poéticas. Daí que a linguagem seja tomada como uma leitura hermenêutica da experiência, expressão que assume uma vasta e originária significação ontológica, ao indicar a manifestação do carácter linguístico do Acontecimento do Ser.

§ 20. Faremos notar que o homem compreende sempre o Mundo no interior de um projecto interpretativo, cuja linguagem é a sua única justificação.
20.1. Muito embora as coisas existam fora do gesto falado, o Mundo, esse horizonte inteligível que abre acesso aos entes, só existe, em sentido autêntico, na e pela interpretação efectuada através da linguagem. Apenas onde há linguagem há Mundo, quer dizer, uma esfera em permanente transição de decisão e de obra, de acção e de responsabilidade, mas também de arbítrio e de con-fusão.
20.2. A análise existencial não é, definitivamente, senão um estudo do homem no universo do Discurso. O Da-sein determina o modo como o próprio homem se interpreta como ente que fala, e falar equivale a fazer surgir o Ser: a linguagem é um modo do Ser, uma estrutura da Ek-sistência. Porém, não é um existencial entre outros, mas o existencial fundamental no qual todos os outros ganham corpo. A linguagem não é somente uma possibilidade do Da-sein, mas uma determinação essencial do ser-homem, não obstante constituir, a um tempo, a sua grandeza e a sua miséria.

§ 21. O discurso do Mundo é, inextricavelmente, uma palavra do Ser. E a Ek‑sistência é o Discurso que reflecte essa Linguagem fundamental: «a linguagem é a casa do ser» , na qual o homem habita e, deste modo, ek-siste , pertencendo à verdade do Ser que ele próprio vigia. Em Unterwegs zur Sprache , Heidegger afasta toda a falsa interpretação desta metáfora, que aliás é muito mais do que uma simples metáfora: uma casa recolhe passivamente aqueles que abriga, enquanto a linguagem tem o poder efectivo de trazer à luz, de des-velar a essência do Ser e o ser do Homem.

§ 22. A importância crucial conferida pelo filósofo à linguagem na citada passagem de Briefe Über den Humanismus, resulta justamente da firme convicção segundo a qual a linguagem é própria do homem, não apenas porque para além de todas as suas outras faculdades o homem também tem a genial capacidade de falar, de comunicar inteligivelmente através das palavras, mas sobretudo porque apenas por intermédio desta irredutível via, ele tem acesso privilegiado ao Ser.

§ 23. Segundo o mesmo princípio, a função da linguagem é deixar que o Ser seja. Todavia, não é mais o homem que determina o Ser, mas o Ser que, através da linguagem, se revela ao homem e o determina. Esta tese ‑ que nos remete para essa outra pela qual a linguagem se nos apresenta como acontecimento do Ser ‑ para além de inovadora, é absolutamente fundamental para acedermos à compreensão da problemática da sua fundamentação ontológica, em virtude da qual assume um papel verdadeiramente originário que a situa aquém da sua perspectivação habitual como instrumento de comunicação.
23.1. Face à significação atribuída a este modo específico de re-velação, o homem surge-nos apenas como o portador da linguagem ‑ em virtude de a linguagem não radicar na essência do homem, mas manifestar uma essência histórico-ontológica fundamental, sendo segundo esta essência que ela é dita como a «Casa do Ser» ‑ e como tal tem a função, sendo ele o único, de mostrar o Ser por seu intermédio.
23.2. Revelando esse extraordinário poder de manifestar a originariedade e primacialidade da Existência, de fazer advir o Ser à luz, de o desocultar, de o colocar na não-latência e com ele a essência do homem, a linguagem afigura-se como a única morada onde o Ser pode ser realmente acolhido e posteriormente mostrado na sua nudez primordial.
23.3. A linguagem do Ser suporta a nossa linguagem de todos os dias: o Ser é o não-dito e o não-falado de que se alimenta a nossa palavra. O encontro com o para além das palavras é possível porque o Ser, essa Alma da linguagem, é o lugar da nossa permanência.
23.4. A linguagem que nos faz comunicar com o Mundo e com os outros homens, ao conceder-nos a possibilidade de aberturas múltiplas, exprime sempre algo de diferente do que se diz, ou seja, exprime as relações ocultas que as palavras mantém com o Ser, quer dizer, com aquilo que em si mesmo é e não necessita de nada para que seja.

§ 24. Salientaremos, também, que a linguagem é um Acontecimento (Ereignis) que, ao manifestar-se, produz a indicação e a língua. A palavra é a marca do Acontecimento interior à linguagem e a escrita o depósito da tradição do Ser. Ao interrogar-se o Ser, a linguagem arranca constantemente a palavra ao peso significativo da Tradição e a escrita aos limites do signo para a fazer regressar à presença originária que permitiu a sua manifestação.
24.1. Neste sentido, a linguagem reside na diferença interior à palavra do Ser que se inscreve entre o Acontecimento o qual, ao mesmo tempo, des-vela e oculta a letra ou a palavra que morre no limiar da coisa.
24.2. A ideia de uma linguagem transparente ao espírito é seguramente uma ilusão de representação. Há sempre, para além do dito, uma palavra essencial que o ser do ente coloca na presença, torna patente na sua veraz manifestação, mas que não pode ser captada como palavra porque o acontecimento do Ser é a sua marca concomitantemente oculta e des-velada.

§ 25. Se em SuZ a linguagem já ocupava uma posição peculiar, pois, como signo, revelava a própria estrutura ontológica da mundaneidade, nas obras posteriores, nomeadamente em UKW e na conferência intitulada Hölderlin und das Wesen der Dichtung, aparece-nos como o próprio modo do abrir-se na abertura do Ser, principalmente enquanto é pensada como Poesia, essa arte originária da palavra.
25.1. Posto que a abertura do Mundo se dá sobretudo na linguagem, é nela que se pode perscrutar a autêntica inovação ontológica, uma vez que nos é dito que a «linguagem é poesia no sentido essencial»[10], ou como Heidegger refere em Einführung in die Metaphysik [11], «a linguagem é poesia originária (Ur‑dichtung) em que um povo diz o Ser» e, inversamente, a grande Poesia, pela qual um povo entra na sua História, inicia a configuração da linguagem.

§ 26. Dizer que a Linguagem é Poesia, apenas no sentido essencial, significa afirmar que o falar autêntico é criação, abertura, inovação ontológica, uma vez que nem todo o falar é criação, já que comummente se torna um mero instrumento de comunicação, que se limita a articular e a desenvolver, a partir do seu próprio interior, a abertura já aberta.
26.1. Mas, na linguagem essencial instituem-se os Mundos históricos em que o estar‑aí e o ente se relacionam entre si nos vários modos de presença humana no Mundo, o que faz da linguagem, tomada na sua dimensão poética, «o fundo que rege a História do homem», porque, afinal, «o que perdura fundam-no os poetas», diz a quarta palavra condutora de Hölderlin.
26.2. Fundar o que permanece ou fundar o permanecente significa des-velar o Ser para que o ente apareça, só pelos poetas alcançado, os únicos capazes de nomear os Deuses e todas as coisas, naquilo que em si mesmas são.
26.3. O nomear do Poeta não consiste, simplesmente, em atribuir um nome a uma coisa anteriormente conhecida. Falando, o Poeta celebra a palavra essencial, a palavra de origem, e celebrando-a, o ente passa a ser nomeado no que é. Através desta nomeação, torna-se conhecido enquanto é, pois a Poesia é, na sua essência, a «fundação do Ser pela palavra» e esta fundação é «doação livre». Quando os Deuses são nomeados originariamente pelo Poeta e a essência das coisas se torna palavra, a própria existência humana é inserida num contexto firme, ao mesmo tempo que é colocada sobre o terreno desta fundação.

§ 27. A Poesia não é um fenómeno de Cultura ou a expressão de uma "alma natural". É a obra suprema da linguagem, mas enquanto dada como projecto de iluminação na abertura, na clareira (Lichtung) do Ser.
27.1. O Dizer do Poeta é este mesmo projecto de iluminação onde é dito como o ente chega à abertura. Este Dizer que em si mesmo é Poema, nomeia o Mundo e a Terra assim como o espaço de jogo do seu combate. Precisamente por isso, cada língua é o surgimento do Dizer no qual, para um povo, se abre historicamente o seu Mundo e onde é salvaguardada a veracidade da Terra no seu oferecimento original.
27.2. Perseguindo esta demanda originária, a Poesia é, para Heidegger, Pensamento. E o Poeta é o Pensador, por excelência.
27.3. Trata-se aqui do Pensamento tomado na sua dimensão inaugural, onde a língua manifesta a sua essência, que é o dizer do Ser de todos os entes. Pensamento não significa aqui qewria, determinação do conhecer como atitude teórica, ou tecnh, tomada no sentido da reflexão ao serviço do fazer e do produzir, ou praxiz, mas aquilo que pertence (gehören) e escuta (horen) o Ser.
27.4. «Numa palavra, o pensamento é o pensamento do Ser»[12], dado na musicalidade própria da linguagem originária, das palavras de origem, que se constitui, na escrita heideggeriana, numa poética musical, qual «ars inveniendi» do Pensamento e do Discurso, onde comungam o Poeta e o Músico – Hölderlin e Kreutzer ‑ numa poética da música que incorpora a especificidade da filosofia do nosso autor, pautada por um pensar fundado no ouvido, na audição e não mais no paradigma metafísico da visão.

§ 28. Veremos, como Heidegger não é um pensador da visão, do ver, sentido privilegiado por toda a história do pensamento ocidental, desde Platão. Mas o pensador do audível, do sentido da escuta. Antes de ver, o Pensamento escuta a voz do Ser, que do seu esquecimento se ergue como um apelo. Escuta a voz silenciosa da Terra, que clama num grito de alerta.
28.1. É um pensar auditivo e não visual que emerge nas partituras de Kreutzer ou nos hinos de Hölderlin, como em cada acto de escrita do nosso autor. A aura da música, a musicalidade inerente a todo o ente que é exposto pelo canto do Poeta e pelo «Tom fundamental» da poiesis musical do compositor que percorre os «caminhos do campo», perpassa o ser das coisas que o Pensamento pensa e que o nosso Discurso diz. O Ser e a Terra transportam em si os sons inaugurais, entre os sons mais íntimos do silêncio por onde perpassa a voz e o ouvido do Ser, esse estado de apresentação e de presença.
Ora, «o que caracteriza a música, escreve Heidegger, não é o facto dela nos “falar” daquilo que perante nós não se faz entender, e que, por isso mesmo, ela não tem necessidade da linguagem ordinária, que é aquela das palavras? Dizê-mo-lo, com efeito. Portanto a questão permanece: celebrar uma festa pela música vocal e instrumental, não é celebrar uma festa onde pensamos?»[13].
28.2. A «Escuta», o «Apelo», a «Mensagem», são a pedra de toque, desta tese que desemboca na defesa de uma poética da música em todo o pensamento heideggeriano e, especialmente, nas reflexões tecidas pelo autor sobre a Poesia e sobre a Música, na sua relação com o Pensamento (meditante e não calculante) e com a Linguagem.
28.3. A Poesia é a forma suprema da própria musicalidade do Pensamento que escuta o apelo do Ser, cuja mensagem primordial é dita pelo dizer poético. O Pensamento é, por essência e no seu sentido mais genuíno, poetizar (dichten), segredo da arte de pensar, na qual e para a qual o homem é chamado a existir.
28.4. É, pois, difícil distinguir, neste contexto, a Linguagem Autêntica, o Pensamento e a Dichtung. Em última análise, e não obstante as diferenças conceptuais que possamos evidenciar, estes conceitos – Linguagem Autêntica, Pensamento e Poesia ‑ acabam por se tornar homólogos, homologia que é estabelecida por uma comunidade essencial: «das Sein», o Ser. Poesia e Pensamento radicam exactamente na mesma fonte: o amor à palavra, à palavra essencial que diz o não-dito, que comunica o inefável sempre adiado pela voz do silêncio que comunga no dizer primordial.

§ 29. Dispondo desse poderoso modo de des-velamento ‑ a Linguagem - a Poesia afigura-se como sendo uma forma de alhqeia, tal como a Arte genericamente considerada. Em vez de banirmos os Poetas da cidade, como havia pretendido Platão, urge requerê-los por serem os únicos que privilegiadamente dispõem da radical capacidade de instaurar uma ordem durável, ao nomearem as coisas que permanecem inacessíveis ao vulgo.
29.1. Dizendo o que é o ente na radicalidade do seu Ser, a Poesia instaura-o; e tal instauração possui o carácter de ser um dom fundante e inicial, rebatendo toda a familiaridade da aparência.
29.2. Fundando poeticamente tudo o que é, o homem funda-se a si mesmo. Compreendemos, assim, porque é que o Da-sein é poético (dichtrich) e em que sentido é dito que «de um modo poético habita o homem sobre esta Terra». Habitar poeticamente significa: estar na presença dos Deuses e ser tocado pela proximidade das coisas. Eis o veredicto revelado pela quinta palavra condutora do Poeta da Essência da Poesia.

§ 30. O fundamento do "ser-aí" (Da-sein) humano é, pois, poético, como o próprio acontecer da linguagem primordial que é Poesia como fundação do Ser. Se compreendermos esta essência da Poesia dada como linguagem primordial de um povo historicamente concebido pela qual diz o seu ser, percebemos, ao mesmo tempo, que a essencialidade da linguagem tem que ser compreendida a partir da essência da Poesia, tal como a essência da Poesia é compreendida a partir da essência da Linguagem.
30.1. A linguagem não é apenas criação e inovação ontológica, como já se havia referido, mas, sobretudo, o topoz, o lugar-natural do acontecimento do Ser como o abrir-se das aberturas históricas em que o Da-sein está lançado.
30.2. É a linguagem que "rege o nosso estar-aí" e, por esta razão, dependemos dela de um modo umbilicalmente profundo: «a linguagem não é mais um instrumento disponível para o homem, mas aquele acontecimento que dispõe da maior possibilidade de ser homem». Enquanto tal apropria-se de nós, na medida em que com as suas estruturas, delimita, desde o início, o campo da nossa possível experiência do Mundo: só na linguagem as coisas nos podem aparecer e só no modo como ela as faz aparecer. É a palavra que proporciona o Ser da coisa e todo o falar concreto, autêntico, pressupõe que a linguagem já tenha aberto o Mundo e que também, a nós, nos tenha colocado nele.

§ 31. Toda a problematização da linguagem e, em rigor, todo o seu uso ôntico, requer que ela já nos tenha falado. A linguagem é, acima de tudo e originariamente, mais do que uma faculdade de que dispomos; é um «dirigir-se a nós», sem o qual não poderíamos falar. Se isto significa, antes de mais, que todo o falar autêntico é fundamentalmente uma escrita, não quer dizer, no entanto, que o homem seja um ouvinte passivo, uma vez que a linguagem não é, acidentalmente, um "dirigir-se a nós". Pelo contrário, é nesse "dirigir-se a nós", que somos os seus ouvintes e respondedores privilegiados, que consiste a sua própria essência.
31.1. A Linguagem, afirma Heidegger em SuZ[14], «tem necessidade da fala humana, embora não seja um produto da nossa actividade linguística». Ela é o anúncio, o apelo, a mensagem e nós, homens, somos usados por ela como «mensageiros da voz do Ser».
31.2. A linguagem não se dá senão no falar do Da-sein e, todavia, é verdade que tal falar encontra já delimitadas as suas possibilidades e os seus contornos na própria linguagem, ainda que não como uma estrutura rígida que o obrigue, mas como um apelo a que responde.
31.3. É neste sentido que devemos entender porque é que Heidegger retoma do ”Poeta do Poeta" ‑ o romântico Hölderlin, anunciador do modernismo na Arte e na Poesia ‑ a caracterização do homem como Diálogo, porque é que o ser do homem se funda na linguagem e porque é que só acontece verdadeiramente no Diálogo:«Muito experimentou o homem ./Muitos celestiais nomeou/desde que somos um diálogo/e capazes de nos ouvir uns aos outros», lê-se na terceira palavra condutora de Hölderlin, que fala do dizer humano na sua dimensão de alteridade.

§ 32. Entenderemos, portanto, a Linguagem como a forma representativa da veracidade do que é comunicado, sempre numa relação com a alteridade. «Por isso, a linguagem, o mais perigoso de todos os bens, foi dada ao homem ... para que testemunhe aquilo que ele é». A Linguagem, refere a segunda palavra condutora, é, a um tempo, o dispositivo peculiar do homem e o testemunho da sua id-entidade. A sua grandeza e a sua miséria, qual modo de expressão e de comunicação que encerra em si uma estrutura tão ambígua como a que invade o Fogo de Prometeu, roubado ao Sol para presentear a Humanidade recém erguida
32.1. Ainda e sempre a Linguagem. A Linguagem que é «a casa do Ser» (Die Sprache ist das Hause des Seins), sendo por excelência os Pensadores (die Denkenden) e os Poetas (das Dichtenden) os guardas (der Wacheter) desta habitação (dieser Behausung)[15], embora os Poetas ocupem um lugar de primazia, uma vez que a «poesia penetra toda a arte, todo o acto pelo qual o ser essencial (das Wesende) é desvelado no Belo»[16].
32.2. Significará esta afirmação que a Arquitectura (Bauen) e as Artes Plásticas (Bilden) devam ser necessariamente fundadas sobre a Dichtung? Serão todas as Artes meras variantes da arte da palavra?
32.3. Temos de nos desviar deste impasse, quiçá bizarro, na medida em que a Poesia é apenas um modo entre outros do projecto de iluminação do Ser. Todavia, sendo a sua essência a Linguagem, digamos que a Arquitectura e as Artes Plásticas só são possíveis, só advêm verdadeiramente nesse projecto de iluminação do Ser, em virtude da abertura operada pelo dizer e pelo nomear poético. Só por meio da linguagem podem ser efectivamente guiadas. Todas as artes, são cada uma a seu modo, Dichtung, Poema, «dizer projectante», no interior da clareira do Ser advindo em obra.

§ 33. A Poesia é pensada precisamente a partir da poihsiz, qure dizer, como um dos modos de manifestação do Ser. A essência da Poesia apreendida a partir da experiência grega do pensar, brota do Ser como do seu fundamento original. A questão da essência do poético, bem como a da Arte, não pode ser pensada senão a partir da «Questão do Ser».
33.1. Quando o Ser não é mais compreendido no horizonte do tempo, a historicidade poética manifesta-se como o domínio próprio onde a verdade do Ser é colocada em obra. Longe de exprimir simplesmente uma Cultura, a Poesia torna possível toda a Cultura. Por conseguinte, se a Arte é na sua essência Dichtung, a essência da Dichtung é precisamente a instauração da verdade.

§ 34. Na sequência das teses apresentadas sobre a Poesia e sobre a Linguagem, e não obstante as múltiplas alusões já proferidas sobre o Poeta eleito, é nosso propósito dar a conhecer de que modo as reflexões heideggerianas sobre a Poesia, encontram a sua cabal elucidação em Hölderlin und das Wesen der Dichtung, texto de análise obrigatória no que concerne à demanda pela essência da Poesia, nos domínios da poética da música, e nos restantes escritos incluídos em Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung, e Hölderlins Hymnen «Germanien» und Der «Rhein», onde escutamos as mais preciosas palavras sobre os nostálgicos, solitários e intempestivos poemas do Poeta que dita, para Heidegger ‑ em vez dos mais notáveis, Homero, Virgílio ou Dante ‑, a «essência essencial» da Poesia.
34.1. Interessa-nos apontar, particularmente, os traços mais marcantes que perpassam o diálogo estabelecido entre Heidegger e Hölderlin, assaz fecundo desde os escritos desenvolvidos pelo filósofo a partir de 1934. Referimo-nos, nomeadamente, aos comentários tecidos a quatro dos hinos do Poeta: «A Germania», o «Reno», «Recordação» e «O Istro», de onde desembocam uma série de conferências proferidas pelo filósofo entre 1936/68, posteriormente coligidas em Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung.
34.2 O mesmo procedimento será adoptado, no que concerne aos restantes «poetas de Heidegger»: Sófocles, Rilke, Char, Trakl e Hebel, quais mostrantes privilegiados desse dizer originário, desse momento inaugural de coligação primeira da Poesia e do Pensamento, do canto da Natureza, da habitação poética da Terra Natal, da re-união do humano e do divino.
Na sequência das reflexões sobre Hölderlin também eles elucidam, embora, segundo Heidegger, de um modo menos enfático, essa importante missão do canto poético em tempo de infortúnio, e partilham do mesmo estatuto que Homero manteve entre os primeiros gregos: .educador e guia do Povo, sacerdote e profeta. Os textos «Porquê os poetas ...? » e «Unterwegs zur Sprache» são naturalmente a consagração deste ponto central da nossa investigação.
34.3 As teses que vemos explicitamente desenvolvidas nestes escritos, encontram-se em embrião desde 1927, com a publicação de SuZ. Concernem aos pontos nevrálgicos de toda reflexão heideggeriana, centrando-se, particularmente, nos seguintes temas:
a) A pergunta pelo ser do ente, pela natureza da «ousía», mote do pensamento ocidental, percorrido nas múltiplas formas em que se metamorfoseou ao longo da história da filosofia, nos conceitos de «realitas» e «actualitas», na problemática da «creatio» que proporcionou a adveniência da «possibilitas»;
b) A proeminência da categoria da «existentia» concedida pela ontologia medieval, no quadro de uma interrogação pela «res», entendida no sentido da efectividade do real/causado, fundamental para a preparação do terreno de emergência da concepção moderna de Natureza, qual reunião de factos espácio‑temporalmente determinados;
c) A concepção moderna da Natureza ordenada segundo a legalidade matemática, que rejeitámos, desde o início, em prol da sua visionação como Fusiz, tomada no sentido grego de «crescimento», pensada e sentida aquém dos critérios de uma Natureza operatória, da Natureza dada como fundo disponível, qual guia da edificação de uma civilização técnica, drasticamente organizada à escala planetária.
d) A evocação da Natureza que educa os Poetas, estendendo maravilhosamente a sua tarefa a toda a «presença». A Natureza que desenvolve a sua presença na obra humana e na história dos povos, nas constelações e nos deuses, mas também nas pedras, nas plantas e nos animais, nos rios e nas tempestades, como Heidegger refere explicitamente no seu comentário ao poema de Hölderlin «Wie wenn am Feiertage», incluído em Erlaüterungen zu Hölderlins Dichtung;
e) O estar na proximidade dos «Caminhos do Campo», respirando a pureza atmosférica da mais verde e viçosa floresta, onde sentimos o silêncio primordial de todo o canto; o modo primeiro de estar junto do mais próximo, do mais originário e do mais simples; o revisitar do ambiente bucólico da serena vida do Campo, particularmente exemplificada nas telas de Van Gogh e nas partituras de Kreutzer, permanecer aí com o camponês que ama a Terra, que a cultiva ao mesmo tempo que salvaguarda a Natureza na sua mais bela e divina potência e omnipresença em todas as coisas. E, finalmente, sentir o inaltecimento do Sagrado que a Natureza aloja, esse lugar recôndito onde repousa a palavra do Poeta;
f) A figura do Poeta, os traços que perfilam o seu rosto mais do que humano, move também, a partir «dos poetas de Heidegger», o nosso discurso sobre a essência da Poesia, sobre os domínios da poética musical, qual aura envolvente dos mais fecundos pensamentos do filósofo da Floresta Negra.
g) Pensaremos o Poeta, na silhueta de Sófocles, Hölderlin, Rilke, Char, Trakl e Hebel, como aquele que oferece ao povo o dom celeste, o único de coração tão puro e inocente como os infantes, cujo canto testemunha a presença dos deuses na proximidade da insustentável leveza do Éter.
34.4. Mais especificamente, reflectiremos sobre o ser Poeta, a partir de Hölderlin que canta, segundo Heidegger, «a essência essencial» da Poesia, entendida não como um conceito genérico resultante do estudo comparativo das múltiplas espécies encontradas, mas pensada a partir do que a faz despoletar: o apelo do Ser que se diz na novidade instante do seu próprio aparecer.
34.5. É da natureza audível do Ser que nasce a autêntica vocação do ser Poeta, assim como a potencialidade de a consumar no exercício do verbo. E é a partir desta tese que poderemos entender o postulado holderlineano ressuscitado por Heidegger, segundo o qual a Poesia é «fundação do ser na palavra».
34.6. Verificaremos que tal reflexão sobre a Poesia ocorre no contexto de uma meditação sobre a Pátria e sobre a missão histórica que a Poesia em si mesma encerra, tanto para o Poeta como para o filósofo. Os cânticos holderlineanos sobre a Pátria pautam-se pelo traço da alegria e da festividade que aureolam o regresso e mostram a essência da Poesia como destino e missão do povo alemão, determinam a “consignação poética e pensante das novas possibilidades de ser com que se anuncia a história futura”.
34.7. A reconciliação com a Pátria é a grande pedra de toque. Invoca o exílio do Poeta, a sua rejeição de um mundo que recusou o seu referencial religioso, que se afugentou dos deuses e silenciou a voz da Natureza. Do presente nada resta. O futuro não se adivinha. Mas o passado, sistematicamente revisitado, é o topoz da inspiração poética, o topoz do ânimo imprescindível à consumação dessa vocação poética e profética, ou, ainda, a grande referência pela qual é possível restituir-se à palavra o seu poder de revelar e de deixar-ser.
34.8. O regressar do Poeta ao passado releva dessa nostalgia das origens, do momento inicial, da necessidade de exaltação primeira do Divino, dada pela existência grega que acolheu e epifanizou a luz primeira com que o Deus se tornou presente e se notificou aos mortais.
34.9. O regresso à Grécia simboliza a salvação pela memória da origem, qual tesouro escondido na interioridade da língua, através da qual fala a Terra Natal dos desígnios do seu povo e é resgatado o desaparecimento do último Deus e a morte do sagrado que já não invade o estado presente do mundo.
34.10. A nostalgia evade-se. E o canto do Poeta emerge de um silêncio ancestral. Uma nova aurora da revelação do ser torna-se possível, bem como o firmar do momento da fuga ou da vinda do Deus. É entre a história passada e futura que Hölderlin adquire, então, a mais plena compreensão do sentido da vocação de poeta. A explicação historial da essência da Poesia, aqui se encerra como anúncio profético autêntico do destino.

§ 35. Concluiremos que a Poesia é para Hölderlin, e para Heidegger, segundo a linha interpretativa do nosso filósofo, «a celebração do “Amor que tudo mantém” (...) que, na singeleza da brisa, sempre interpela o poeta, para que leve ao ouvido dos homens o murmúrio da fonte».

§ 36. Suscitar a escuta conservando o ouvido direccionado para a pertença reciproca do Ser e da Palavra, numa espécie de harmonia musical sempre preservada, eis a dimensão em que, latamente, a verdade do Poema se dá a ver na sua nudez primordial. Não só na Arte e na Poesia, porquanto ela está ‘em redor’, borbotando do todo do Mundo, e do Ser. É este todo uma imensa obra de arte poética-musical, continuamente espantando pela sua e-normidade?

§ 37. Por excesso ou por defeito, o conceito de Arte descaracteriza-se, perdendo a sua pre‑valência como mostração da verdade pensada a partir de uma poética instauradora, na sua musicalidade inicial, uma vez que não é só por esta que a verdade se manifesta, perdendo igualmente a sua especificidade se pensada a partir do conceito de origem. Afirma o filósofo no Posfácio de UKW: «As considerações precedentes concernem ao enigma da arte; o enigma que a arte é ela mesma»[17].
37.1. Ora, no topoz da origem tudo é misterioso: a Arte, como a obra poeta, do músico ou do pintor, como o pensar, como o ente, como o homem. Na tarefa de especificar o que seja a Arte e a Poesia, isto de a pensar a partir da origem inefável, da fonte matricial do ser, do brotar-ser, pode constituir um último recurso, mas não permite resolver o problema, e nada acrescenta de positivo à noção, por nós estudada, de poética instauradora e de poética da música..
37.2. Conquanto esta categoria permita dilucidar a especificidade da postura da obra de arte, ela permanece todavia impotente relativamente à determinação da essência da própria Arte, a proveniência inicial desta sempre recaindo no domínio para nós insuperavelmente inexplicitável e misterioso. Heidegger propondo enigmas ... Pretensão do filósofo, ao querer ser Esfinge? Ou erro deste nosso estar metafísico, que nos não deixa ser Édipo?

II – Ojectivos e Linhas Gerais de Investigação

§ 1. Pensaremos a Poesia como obra de arte, e o Poeta como ente exemplificador do ser do artista, sempre em co-relacionamento com a «Questão do Ser». Pensaremos a Poesia e a Música (bem como a Pintura e todas as Artes), com a questão do sentido do Ser, em função da problemática da sua origem, no intuito de compreendermos esse «passo atrás» que nos permite remomerar o acontecimento primordial de todas as coisas e chegar ao início da aventura primeira do Homem com o Ser, ao começo originário do Pensar do Ser pela Palavra essencial, a única capaz de nos doar e de nos traduzir o destino historial do Ser e da Essência do Homem. Remontaremos à «Grande Poesia», à «Grande Arte», como caminho condutor do nosso «estar-aí» histórico, do «ser-aí» projectante de um povo num Mundo e numa Terra que temos por obrigação conservar e salvaguardar, contra toda a destruição ou vandalismo ecológico.

§ 2. Revisitaremos Rilke, o poeta que mergulha Heidegger no âmago da modernidade, onde encontramos desenvolvidos alguns dos grandes temas do pensar heideggeriano. Rilke, “mal tratado” pelo nosso filósofo, ao mesmo tempo que intencionalmente rememorado, em tempo de indigência, em «Porquê os Poetas ...?» ‑ depois de mais uma consagração de Hölderlin e, noutros textos de Sófocles, Char e Trakl. Rainer Maria Rilke, o poeta do Aberto, da diferença ontológica, da salvação da Terra, do Começo, dos Contrastes, qual cantor órfico da Vida e da Morte, do Visível e do Invisível, dos Anjos e dos Homens, do In-habitual, mas também do Jogo, da Gravitação, ou da Esfericidade.

§ 3. Referir-nos-emos, do mesmo modo, a Sófocles, Char, Trakl e Hebel, amigos da casa do mundo que nos convidam a habitar autenticamente, a habitar poeticamente nesta Terra assim desolada, quais mensageiros do divino, do canto órfico, uma vez traído por um simples olhar para trás. Também poetas do canto da Terra Natal e da Palavra do Ser que, tal como a Lua, transporta consigo a mais doce luz. São enaltecidamente os poetas da Geviert, da Palavra simples, das “palavras de origem” que enobrecem o Dizer poético, da migração humana da nascença para a morte ‑ temas igualmente centrais da filosofia heideggeriana.
3.1. É nosso intuito explanar as teses centrais da respectiva obra poética, proferindo as nossas interpretações, a partir da própria hermenêutica heideggeriana. Compreender as teses do filósofo sobre a Poesia e sobre o lugar do canto dos Poetas, e assim re-erguer, com a consistência e o rigor adequados, o Poeta da essência da Poesia, a partir dos esclarecimentos que Heidegger tece a alguns dos seus principais escritos.

§ 4. Assim, pretenderemos demonstrar:
a) como a obra de arte poética, enquanto fazer específico do Da‑sein, do nosso ser‑aí ontologicamente fundado, pertence ao Ser e dele recebe a sua determinação essencial;
b) como a obra de arte poético-musical faz provir a Terra celebrada pelo canto do Poeta, e como manifesta o desabrochar inaugural da jusiz, esse fundo oculto, mas essencial a toda a obra de arte, não havendo obra que não lhe pertença, embora se encontre, hoje, violada e esgotada até aos seus últimos redutos, por esta humanidade esquecida do sentido do Ser, mas que a obra de arte, a Poesia, «essência essencial» da Arte não deixa de presentificar na sua autenticidade iluminatória.

§ 5. A partir da reflexão heideggeriana sobre a Poesia, a Linguagem e a Arte, centrar‑nos-emos sobre a natureza específica das relações patenteadas entre a Arte, a Poesia, a Linguagem e a Música, pronunciando‑nos, numa primeira parte, sobre a legitimidade do corolário da promoção da Poesia a essência da Arte, sobre a questão essencial que pergunta «Porquê os poetas em tempo de infortúnio?», traçando a missão da Poesia nos Tempos Modernos, correlativamente com o lugar de destaque conferido ao canto dos Poetas, no âmbito da temática central que move o nosso estudo: «uma poética da música»
5.1. Pensaremos a Poesia como arte originária da palavra, como um acto de fundação que é «doação livre». Explicitaremos o sentido que devemos conferir à tese que nos apresenta a Poesia como obra da linguagem, que é «a Casa do Ser», como forma de des-velamento do Ser, do Homem e do Mundo.
5.2. Neste contexto, torna-se oportuno desenvolver uma abordagem reflexiva sobre as noções de «poética», «poética da música», «escuta», de «anúncio», de «apelo», de «mensagem» e de «diálogo», bem como de «discurso», na sua relação com as significações utilitárias e poéticas do Mundo.
5.3. Falaremos do discurso poético-musical do Mundo como palavra do Ser e do universo do discurso na sua correlação com a análise existencial do Da-sein ‑ cuja linguagem manifesta a originariedade da Existência ‑ do Homem como Da-sein, o «Pastor do Ser», o guardião e o mostrador do Ser pela linguagem poética.
5.4. Reflectiremos, ainda, sobre a relação patenteada entre Poesia, «criação», «abertura» e «inovação ontológica», verificando de que modo, pela Poesia, se instituem mundos históricos e como o habitar poético do Da-sein nos conduz à presença dos deuses e à proximidade das coisas.
5.5. Centrar-nos-emos, em última instância, e na sequência das questões já problematizadas, sob os esclarecimentos tecidos pelo nosso autor à Poesia de Hölderlin, «O Poeta do Poeta», no intuito de indagarmos sobre a essência da Poesia e sobre a essência da Linguagem, seguindo o caminho delimitado pelo conteúdo significante das «cinco palavras condutoras», proferidas pelo Poeta da essência da Poesia.
Pensaremos a Poesia como acto originário de fundação do Ser pela palavra, o poetizar como a mais inocente de todas as ocupações, a Linguagem, «o mais perigoso de todos os bens», como privilégio do homem e testemunho da sua id-entidade, e o próprio homem como Diálogo, qual ente privilegiado no seio da Existência que, pela boca do Poeta, sabe que onde reside o perigo se encontra, também, a salvação. O Homem, essa “figura recente” na história do saber, que, como Da-sein, ainda habita poeticamente nesta Terra assim dominada.
5.6. Salvaguardaremos, com Heidegger, o privilégio da Poesia, entre as artes, e, consequentemente, o privilégio do Poeta, como arauto de toda a significação artística. Este ente singular no seio da Existência, funda o que permanece e retém a dimensão essencial do homem como Diálogo. O Poeta, o portador da palavra inaugural pela qual um Povo histórico diz o seu ser, qual mensageiro da palavra divina e do canto da «Terra silente».
7. Louvar, com Heidegger, os Poetas de Heidegger e o Poeta em quem encarnou a essência da Poesia, seguindo, numa tentativa de auscultação dessa essência, as suas «cinco palavras condutoras», destacadas e analisadas pelo filósofo, autênticos caminhos iluminatórios, motes de reflexão sobre temas absolutamente cruciais e cada vez mais pertinentes neste mundo de vulgarização do dito e da vacuidade da linguagem:
a) o Poetizar, essa ocupação mais desinteressada e mais pura do pensar;
b) o Diálogo, a Escuta/Audição e a Comunicação na sua dimensão ôntica e ontológica;
c) a Linguagem, esse elemento de identificação da especificidade do humano que é aqui tomada pelas suas raízes mais fundas, como o que privilegiadamente abre a clareira do ser e traz à luz o dizer no seu estado absolutamente primeiro, embora se nos apresente, também, como o mais perigoso de todos os bens à disposição do Da-sein;
d) o lugar do Poeta, em tempo de infortúnio, esse sacerdote, visionário e autêntico des‑velador dos mistérios do Mundo, «Pastor do Ser» e da Verdade, instaurador da «Serenidade», qual meio de salvação originária e irradiação luminosa do Mundo;
e) a possibilidade da habitação poética do Homem.
5.7. Manteremos vivo o intuito de mostrar como esta perspectivação do discurso artístico heideggeriano apresenta uma relação de profundo entrelaçamento com o estatuto e papel ocupado pela linguagem ‑ falar da Poesia como essência da Arte é, a um tempo, falar sobre a essência da Poesia, sobre a essência da Linguagem e sobre a essência do Homem, não propriamente sob um ponto de vista antropológico, mas ôntico-ontológico ‑, na compreensão onto-artística de um Mundo desenraizado do seu fundamento primordial, esquecido por um pensar que jamais faz repousar a sua morada na «Casa do Ser».
Neste sentido, as incursões poético‑onto‑antropo‑lógicas da nossa investigação serão uma constante, uma vez que a autêntica compreensão do fenómeno artístico e do fenómeno poético-musical – de que o Poeta e o Músico são os expoentes supremos ‑, em Heidegger, exige que procedamos à recuperação dos pontos nevrálgicos dos arautos da indagação primordial do Ser e do Homem, do Ser, do Pensar e do Dizer que a Arte, por si mesma, e em particular a Poesia, tem o poder de re-velar.

§ 6. Os pressupostos de toda a nossa problematização onto-artística, aqui apenas sumariamente enunciada, centram-se nos seguintes pontos:
6.1. Compreender Heidegger não significa tão-só mudar completamente o nosso olhar sobre este Mundo e sobre esta Terra que ainda habitamos. Mas, sobretudo, indicar o caminho da plena autenticidade a traçar pela visão de nós mesmos, seres errantes assim projectados numa existência de liberdade e de responsabilidade, seres‑no‑mundo e seres-para-a-morte, que procuramos algures o esquecido sentido do Ser, a sua presença originária, as formas mais radicais de des-velamento do mistério da simples gratuitidade de todas as coisas que são e que, pela Arte, qual forma privilegiada do fazer humano, se dão no seu desfloramento primordial.
6.2. Perguntaremos, a nós mesmos e ao Mundo, com que arte de Poeta poderemos habitar nesta Terra assim dominada pela civilização técnico-científica, que nós próprios edificados em nome do tão famigerado progresso da humanidade, onde a salvaguarda da originariedade do Ser e do Homem parece não ser mais possível, apesar de, neste tempo de infortúnio, onde cresce o perigo residir também o que salva?;
6.3. Pensar a filosofia de Heidegger é pensar, apesar de tudo, toda a filosofia, todas as interrogações que colocámos e continuamos a colocar sobre os planos do Ser e do Ek‑sistir. É, ainda, aprender a pensar de modo in-habitual, porque somos inevitavelmente conduzidos a recuperar essa ligação primeira entre o Pensar e o Ser, a recuperar o sentido do Ser perdido nas tramas da Metafísica que tudo subordinou aos enunciados da Lógica. O Ser, qual fundo fundante do nosso Da-sein, qual fundamento do brotar e perpetuar de todos os entes, qual fonte matricial que se mostra no seu ocultamento como a predominância do desabrochar. O Ser qual solo natal evocado pelos poetas, decifradores de enigmas e redutores do acaso, portadores da voz primeira, os amigos da «casa do mundo», mensageiros dos apelos da Terra que tudo preserva, quiçá visionários, quiçá seres proféticos entretecidos nas quatro regiões do Ser: o humano e o divino; o terrestre e o celeste.

Notas:
[1] Idem, p. 84.
[2] Idem, p. 84.
[3] Idem, p. 73.
[4] Idem, p. 84.
[5] Idem, p. 85.
[6] Idem, p.75.
[7] M. Heidegger, UKw, in Holzwege, pp. 59 e 62.
[8] Martin Heidegger, “Zusätze”, in Holzwege, p. 74
[9] Martin Heidegger, Sein und Zeit, p.201.
[10] Martin Heidegger, Hölderlin und das Wesen der Dichtung, p. 40.
[11] Martin Heidegger, Einführung in die Metaphysik, p. 37.
[12] Martin Heidegger, op. cit., p. 78.
[13] M. Heidegger, «Sérénité», in Questions III, pp.162 – 163.
[14] Martin Heidegger, Sein und Zeit, p. 13.
[15] Martin Heidegger, Lettre sur L’Humanisme, p. 45.
[16] Martin Heidegger, Esais et Conférences, p. 47.
[17] Idem, p. 88.

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