o olhar sobre o que nos rodeia, sobre nós
mesmos, e aprender a pensar diferente.”[1]
Fernando Belo
1. Um olhar atento sobre o mundo em que vivemos ‑ que a todo o momento nos surpreende com as mais recentes descobertas científico-tecnológicas, em prol “disso” a que resolvemos chamar progresso, palavra mágica que tem enfeitiçado mesmo o mais céptico dos pensadores ‑ sobre esta humanidade que perdeu de um modo verdadeiramente descontrolado a consciência sobre si mesma e sobre as suas limitações mais evidentes, faz-nos ver que a catástrofe desde há muito anunciada já ocorreu: a dominação tecnológica da nossa civilização.
Talvez tenha sido esta a experiência vivenciada por Heidegger (1889 ‑ 1976) que encontramos exposta nos seus escritos do pós Guerra, nos quais se espelham, de um modo vivo e enriquecedor, as preocupações “ecologistas” de um homem que, seguindo de perto o anunciado por Sófocles no segundo Coro de Antígona, pensou a Terra, qual espaço originariamente privilegiado da nossa habitação, qual astro errante que hoje se encontra cada vez mais à beira da sua própria degeneração total. É incisivamente no seio desta problemática, que constitui o cerne do pensamento mais fecundo do segundo Heidegger, que vemos emergir com particular acuidade, entre 1939 ‑ 1945, a sua/nossa grande questão: com que arte de poeta poderemos habitar nesta Terra assim dominada, nesta Terra onde a salvaguarda da autenticidade do Ser e do Homem parece não ser mais possível?
2. O grande esforço de Heidegger, que afinal continua a ser o nosso, não se circunscreve apenas à tentativa de delimitação do espaço de dominação da ciência e da técnica modernas, mas remonta ao espaço da filosofia aberta por Platão, amplamente reformulado a uma nova luz, no intuito de compreender o sentido e a legitimidade do domínio hiperbólico e descontrolado de manipulação que a ciência/técnica moderna assumiu enquanto Pro-vocação da Terra-Mãe, contrariamente ao sentido originário da tecnh grega que ocupava o seu lugar central no complexo de significações e percepções irradiadas pela jusiz), concebida como o ingressar pleno no Ser radiante.
É decisivamente esta temática que nos interessa investigar com a profundidade possível. Importa, pois, compreender esse trágico processo da falsa técnica que não é jamais poihsiz, quer dizer, pro-dução (Her-vor-bringen), entendida como o modo privilegiado de fazer abrir a floração e de promover o desabrochar (Aufgehen) do ente na sua nudez primordial, como a Arte, ou melhor, a “Grande Arte” faz emergir, contra a “composição” ou “mascaramento” (Ge-stell) do Ser que nos tornou desamparados do Mundo e da Terra , que somente a Arte parece poder re-únir e re-colher em si mesma, numa salvaguarda autêntica que permite a cada ente humano juntar, em cada acto de criação artística, o Ser e a Verdade do Mundo e do Homem.
3. É-nos dito pelo consagrado Hölderlin, “o poeta do poeta”, múltiplas vezes reiterado por Heidegger: “O que perdura, porém, fundam-no os poetas” e “pleno de mérito, contudo de um modo poético habita o homem esta terra”[2]. Ora, é o papel habitante e de fundação inicial que filósofo confere à Arte que nos interessa auscultar, no seio do contexto do seu pensar artístico, onde encontramos uma relação umbilicalmente estabelecida entre Arte, Técnica, Natureza, Verdade e Pro-dução, conceitos entendidos no seu sentido mais originário que remonta à dimensão grega do pensamento autêntico, cuja significação mais veraz emerge de uma análise etimológica dos termos tecnh, jusiz, alhqeia , poihsiz, categorias estéticas em derredor das quais gira toda a problemática heideggeriana sobre a Arte e, mais especificamente, sobre a sua origem.
É no seio de toda esta contextualização que se movem as nossas investigações sobre a Arte, a obra de arte e a sua origem, bem como todas as nossas incursões sobre as categorias estéticas que dominam o posicionamento ontológico sobre a Arte desenvolvido pelo mais íntimo pensador da Terra.
4. É justamente num ciclo de conferências proferidas por Heidegger entre Novembro de 1935 e Novembro‑Dezembro de 1936, sob o título UKw que assistimos, em versões ligeiramente dissemelhantes[3], à teorização específica sobre a problemática da Arte, que é , a um tempo, a do Ser, da Verdade e da Técnica, bem como a da sua proveniência essencial.
UKw é, seguramente, um dos textos centrais do segundo Heidegger no que concerne não apenas à questão da Arte, mas também, e quiçá sobretudo, à “Questão do Ser” ‑ “Seinsfrage” ‑ através dela apresentada, exposta e mostrada, embora não explicitamente enunciada. Na obra de que faz parte integrante, Holzwege, encontramos outras conferências essenciais para a compreensão interna deste quadrado conceptual (Ser ‑ Arte ‑ Verdade ‑ Técnica) entre as quais destacamos Die Zeit des Weltbildes (1938), Wozu Dichter? (1946) e Nietzsches Wort “Gott ist Tot” (1943), cujas teses nos permitem esclarecer o que é escrito nas entrelinhas deste texto de charneira, de entrecruzamento dos múltiplos e aparentes desvios de um pensar que gira sempre em torno de um único ponto, qual fundamento e fundação de tudo o que se pode pensar, dizer ou nomear: O SER.
Não podemos, pois, deixar de pensar em uníssono a questão da Arte, ou se preferirmos, a “Questão do Ser”, sem recorrer a outros escritos essenciais, não reunidos em Holzwege, mas cuja problemática nos dá a conhecer esses outros caminhos do pensar artístico heideggeriano que com este se interconectam de um modo verdadeiramente essencial. Referimo-nos, particularmente, a Die Frage nach der Technik (1953), Einführung in die Metaphysik (1935), Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung (1936), Über die Sixtina (1955), Nur noch ein Gott kann uns retten (1966), Unterwegs zur Sprache (1959), Hölderlins Hymnen. “Germanien” und “Der Rhein” (1923), Sein und Zeit (1927) e Vom Wesen der Wahrhreit (1930), entre outros textos naturalmente importantes, mas não tão directamente relacionados com o nosso tema: “A Arte, a Verdade e o Belo: o Dizer da Terra e a Mostração do Mundo”.
5. Em UKw é-nos apresentado, de um modo claro e decisivo, um conjunto de teses que determinam definitivamente a base de toda a concepção heideggeriana sobre a Arte, não obstante toda a circularidade de certas afirmações e inferências que se sucedem ao longo do texto, sob um pano de fundo eminentemente ontológico, o qual perpassa e aglutina todos os domínios onde quer que se posicione o mais fecundo pensamento do autor de Sein und Zeit. O texto move-se, sem o dizer expressamente, sobre o caminho da questão da essência do Ser: por detrás da questão que pergunta pela origem da obra de arte, podemos visionar, sem equívocos, a questão fundamental que percorre obsessivamente a indagação heideggeriana: “die Seinsfrage”.
Chegados ao ponto crucial deste pensar não estético, mas onto-artístico, verificamos em que consiste a grande dissemelhança, ou quiçá novidade/inovação da reflexão heideggeriana sobre a Arte, relativamente às grandes discussões estéticas reinantes ao longo da História da Filosofia, pelo menos nos seus moeentos mais excelsos, em torno das chamadas categorias estéticas fundamentais, como o Belo, o Feio, o Horrendo, o Harmonioso ou o Sublime.
Esta indicação afigura-se-nos essencial. Em Heidegger a Arte, não se reduz a tais categorias, assumindo, ao invés, uma dimensão profundamente mais ampla. A Arte emerge mais ligada à verdade do que à beleza ou a qualquer outra categoria estética, pois o belo é, em si mesmo, inerente ao dar-se da verdade, ou se preferirmos, um modo de exercer-se da verdade enquanto não-encobrimento: a beleza da imagem criada na e pela Obra de Arte abre as dimensões ocultas do destino primordial do Ser na sua íntima vinculação com o Homem. Eis o que fará culminar toda a reflexão desenvolvida na tese que postula a ideia de que a essência da Arte é a epifania do Mundo na beleza, ao deixar desabrochar a verdade desse ente que a obra torna patente numa não-latência essencial, permitindo a sua compreensão originária, numa dimensão histórica e historial espacio‑temporalmente delimitada. Porque afinal a Arte “é história na medida em que funda história” e a “história da essência da arte ocidental corresponde ao percurso mutante da essência da verdade”[4].
6. Torna-se óbvio que a Arte não é mais concebida como um domínio especial da realização cultural, ou como uma das manifestações superiores do Espírito humano, tal como Hegel havia defendido. Ao invés, e ao manifestar o seu profundo enraizamento ontológico, emerge como um dos modos de des-velamento e revelação do Ser, como um meio privilegiado através do qual o Ser se dá a conhecer na sua nudez primordial. Todavia, o que é a Arte é uma das questões à qual o texto jamais responde. Permanecemos sempre na mais perfeita aporia, pois a “Arte surge, antes de mais, como um enigma”[5].Não obstante, e como nos é indicado pelo próprio título desta conferência, pretende-se perscrutar qual a origem da obra de arte, quer dizer, discernir a essência da Arte enquanto tal, pois a “questão da origem da obra de arte coloca aquela da sua proveniência essencial, uma vez que é estabelecido que a origem não é senão o emergir da essência”[6].
7. Não obstante as referências que possamos encontrar nas obras do primeiro Heidegger sobre a Arte, a tematização e a sistematização deste tema começa a surgir no autor, de um modo mais definido, sensivelmente a partir de meados dos anos 30, precisamente na sequência das linhas de investigação traçadas na conferência intitulada Vom Wesen der Wahrheit, com a qual UKw apresenta grandes afinidades estruturais e conceptuais, apesar de nos conduzir muito mais longe no que concerne à delimitação explícita das directrizes essenciais que passam a comandar, desde então, a compreensão heideggeriana sobre a Arte.
A reflexão sobre o “fazer-se-obra da verdade”, uma das teses centrais de UKw, correlaciona‑se directamente não apenas com o desabrochar da verdade tomada em si mesma e por si mesma, desligada de denotações que lhe sejam exteriores, mas com o emergir político de uma verdade conotável com um sistema de valores bem determinados e ainda bem presentes em todos nós: os valores sobrestimados pelo Nacional Socialismo, em cuja mensagem o nosso filósofo acreditou, num primeiro momento, do seu caminho em demanda da Verdade do Ser esquecido pelo pensamento imediatamente anterior.
Assim perspectivada, a questão da Arte não é pois apenas um modo entre outros de colocar a “Questão do Ser”, mas a via de re-colocar a questão da Verdade e a questão da Verdade do Ser, sentida como necessidade imediata após a desilusão e a marginalização sentida e sofrida perante uma ideologia que já não valia a pena ser pensada. Tal como Platão, Heidegger experienciou a aventura siracusiana. Depois dela, rejeitado por gregos e por troianos, dedica-se ao que importa realmente pensar: a essência do fazer humano, a um tempo, revelador e pro-dutor do Ser. Esse fazer humano essencial é um obrar inaugural, um “fazer-obra” linguístico, artístico, numa palavra, poético.
Esta fundamentação não nos permite, porém, defender a tese segundo a qual a reflexão heideggeriana sobre a Arte constitua uma espécie de “fuga à realidade” ou uma atitude meramente “romântica”. Apenas nos indica que “num momento convulsionado e tenso, em que a ciência e a tecnologia, a investigação e a publicidade prestavam o serviço inevitável e eficiente à vontade de poder e esta fazia culminar na unilateralidade totalitária e destrutiva o desleixe ontológico e o ocaso da civilização ocidental, a arte podia aparecer como remanso e abrigo de uma verdade prévia e originária, verdade que excede as fronteiras impostas pela previsão informática e a engenharia social e se manifesta guardiã de uma relação mais autêntica e fiel ao ser silente, sem nome nem conceito, que só na voz humana alcança a sonoridade luminosa da palavra”.[7]
Notas:
[1] Fernando Belo, Heidegger, pensador da Terra, p. 16
[2] Martin Heidegger, in “Hölderlin e a essência da poesia”, in Filosofia, Vol. III, Nº 1/2, Outono ‘89, p. 49
[3] Segundo esclarece o tradutor francês de Holzwege, Wolfgang Brokmeier (Tel/Gallimard), a primeira versão de Der Ursprung des Kunstwerkes, é constituída pelo conteúdo de uma conferência realizada por Heidegger em 13 de Novembro de 1935 para a Kunstwissenschaftliche Gesellschaft de Fribourg-en-Brisgau. Foi reformulada em Janeiro de 1936, a propósito de um convite recebido pelo filósofo dos estudantes da Universidade de Zürich. A versão em estudo integra três conferências proferidas para o Freie Deutsche Hochstift (Francfort-sur-le-Main) respectivamente em 17, 24 Novembro e 4 de Dezembro de 1936. O Posfácio a este texto foi escrito, em grande parte, posteriormente a 1936. O Suplemento foi escrito por Heidegger 1956.
[4] Martin Heidegger, Ukw, in Holzwege, p. 69 - 70.
[5] Martin Heidegger, Ukw, in Holzwege, p.89.
[6] Martin Heidegger, op. cit., p.13.
[7] Irene Borges Duarte, “Heidegger: a arte como epifania”, in Filosofia, Vol. III, Nº 1/2, Outono de 89, p., 68.
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