I - Apresentação
“Dando-se num mundo necessariamente humano, pertencendo a esse mundo, a Arte não é, porém, um acontecimento propriamente humano, não é mera manifestação ou produto de um sujeito criativo singular (génio) ou colectivo (sociedade, cultura), mas sim erupção de uma verdade e um ser mais originários e profundos que embora, sem dúvida, se dêem no homem e através dele, não se confinam a este, antes o envolvem e abrem a essa dimensão sua não definida, não limitada, não entificada, não determinada nem determinável, a que Heidegger chama normalmente ser. A questão da Arte, questão da verdade, é, pois, uma das formas de colocar a questão do ser, que constitui o tema melódico do pensar heideggeriano em qualquer das fases em que se costuma dividir o seu itinerário filosófico”[1]
Enunciar as teses centrais a que nos conduz o Posfácio de UKw, exemplarmente expostas no excerto supra citado, bem como as questões que delas derivam, directa ou indirectamente, é o único objectivo desta primeira parte. O desenvolvimento das teses apontadas e das questões colocadas será objecto do corpo central deste trabalho, constituido pelas divisões temáticas subsequentes.
B ‑ Teses
¨ I ‑ A des-construção da estética metafísica ou da concepção de arte como “experiência‑vivida” (Erlebnis)
1. A Estética enquanto reflexão sobre a arte e os artistas Þ 1ª des-construção;
2. A obra de arte como objecto da “apreensão sensível” (aisqhsiz) Þ 2ª des‑construção;
3. A obra de arte enquanto “experiência-vivida” (Erlebnis) Þ 3ª des-construção;
4. A “vivência” antropológica como critério de determinação da essência da arte Þ 4ª des‑construção;
5. A “vivência” como categoria determinante da criação e da interpretação da arte Þ 5ª des‑construção;
6. A generalização e absolutização da Erlebnis enquanto categoria estético-artística fundamental Þ 6ª des-construção;
7. A Erlebnis como elemento responsável pela morte da “grobe Kunst” Þ 7ª des‑construção;
8. A morte da Arte e as obras de arte imortais Þ 8ª des-construção;
9. A insuficiência do conceito metafísico de Arte para a explicação da essência da Arte Þ 9ª des-construção;
¨ II ‑ O projecto heideggeriano para além das des-contruções da estética metafísica: do estético ao artístico e o primado do ontológico
1. A origem (Ursprung) como projecto de iluminação do “carácter-de-obra” da obra;
2. A unidade radical entre origem, obra e verdade: da origem à verdade e da verdade à obra;
3. A verdade como categoria determinante da essência da Arte;
4. A Arte como des-ocultação da verdade do ser: a ontologicidade da verdade e da obra de arte;
5. Da Arte como pensamento do ser ao discurso ontológico sobre obra de arte;
6. A absolutização ontológica do artístico e do estético;
7. O dar-se do belo pela verdade: a pertença do belo ao “auto-conhecimento da verdade”;
8. Da dimensão formal do belo à ontologização do belo: o belo como eidoz;
9. A história da essência da Arte ocidental como história da transformação da essência da verdade;
10. Heidegger e Hegel: a temporalidade e a historialidade da Arte ‑ função historial e função ontológica da Arte;
C ‑ Questões
1. Porquê a recusa de uma fundamentação metafísica da Arte?
2. Porquê a recusa das estéticas da Erlebnis?
3. Qual a relação entre o projecto da ontologia fundamental de Heidegger e a sua
conceptualização sobre a Arte?
4. Como compreender a relação entre obra, artista e criação numa concepção estético‑ontológica que visiona a Arte como mostração da verdade do Ser?
5. A análise da obra de Arte e da sua origem, em Heidegger, seguirá um percurso uniforme?
6. Será indiferente analisarmos a problemática da Arte no segundo e no último Heidegger?
7. O pensar heideggeriano sobre a Arte em UKw, é exactamente o mesmo que emerge em 23 de Setembro de 1966 na entrevista concedida à Revista alemã Der Spiegel, seis anos depois de ter sido escrito o Suplemento à conferência citada?
8. Haverá ou não uma mutação por parte do autor no que concerne à compreensão do fenómeno artístico, em função do modo como a Arte se vai relacionando com o homem, com o mundo e com o tipo de cultura e civilização a que se encontra adstrita?
9. Será que a Arte é, invariavelmente, para Heidegger, uma forma essencial de verdade?
10. Como compreender a defesa da tese que afirma incondicional e priviligiadamente a existência da denominada “grobe Kunst”?
11. Haverá uma Arte “maior” e uma Arte “menor”?
12. Qual o critério que permite a Heidegger distinguir a Arte da Não-Arte?
13. O que permite a Heidegger fazer esta distinção e qual a legitimidade do seu fundamento?
14. Será o pensar heideggeriano suficientemente esclarecedor para a interpretação e compreensão plena e autêntica da Arte contemporânea?
15. Face à tão enraizada concepção especulativa da Arte, constituirá o posicionamento artístico heideggeriano uma ruptura, uma inovação?
O Posfácio da conferência DKw., como veremos a seguir, coloca-nos precisamente algumas das questões mais essenciais no que concerne à filosofia da arte exposta pelo autor a partir de 1935 -36, altura em que sentimos o desviar do seu olhar directo sobre o Ser para as suas formas de mostração essencial, entre as quais se encontra.
É incisivamente a questão da Arte em Heidegger ‑ perpassam o espírito e a fundamentação subjacente à conferência em estudo, envolvida pela ciclicidade de um pensar que rodopia sempre em torno do seu próprio eixo, culminando, amiúde, na aporia aquando da tentativa de explicitação da natureza do relacionamento existente entre os elementos centrais da mais eminente “trindade“ heideggeriana ‑ a arte, a obra e o artista ‑ ou quando o filósofo envereda pela apresentação de um conjunto de hipóteses de esclarecimento da tese que tende para a determinação da essência da Arte e da sua origem: o “pôr-em-obra-da-verdade”, a partir da qual a Verdade emerge como a categoria fundamental de todo o fenómeno artístico autêntico, onde quer que ele se posicione e seja qual for a forma em que a Arte se apresente, não obstante a Poesia, a Pintura e a Escultura/Arquitectura se afigurarem como os modos de ser da Arte privilegiados pelo filósofo, no que concerne especificamente a esse des‑velar primordial da verdade do ser na obra. Porque, afinal a verdade, é em si mesma, artística e a arte é, por natureza, poética.
Mas, no entanto, nem toda a poesia, nem toda a pintura ou escultura é genericamente considerada como pertencente ao universo da “grobe Kunst”, o único modo de ser legítimo a partir do qual vale a pena falar da Arte. O circulo é fechado e enformado por um elitismo que Heidegger revela sem reservas: do lado da Poesia, para além de Stephan George e de Trakl ou René Char, os poetas eleitos são Hölderlin e Rilke, não esquecendo Sófocles, tragediógrafo pertencente ao momento inaugural da fase grega da poesia pensante. Van Gogh, Cézanne, Paul Klee e Braque, são os pintores escolhidos. Também na Escultura/Arquitectura devemos dar o mesmo “passo-atrás” e captar o re-colhimento originário do ser na sua verdade que o Templo Grego em si mesmo instaura.
É este posicionamento crítico e des-construtivo que conduz Heidegger a convocar Hegel, pensador metafísico e revelador legitimamente autorizado para denunciar as insuficientes e ilusórias teorizações estéticas legadas pelo pensamento ocidental, cujas categorias lógico-epistemológicas conduziram, a partir de si mesmas, à agonia da “grobe Kunst”.
Ora, toda a problemática a desenvolver gira precisamente em derredor da questão central exposta por Heidegger no Posfácio da conferência supra citada: A morte da ”Grande Arte”, em estreita articulação com a problemática da origem da obra de arte, nunca abandonada pelo filósofo, em nenhuma das fases do seu pensar. As questões essenciais do Posfácio conduzem-nos a pensar a des-construção da estética metafísica e a morte da “Grande Arte” em torno do veredicto de Hegel.
[1] Irene Borges Duarte, “Heidegger: a arte como epifania”, in Filosofia, Vol. II, Nº 1/2, Outono ‘89, p. 63.
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