2 ‑ Importa, pois, reflectir, num primeiro momento, sobre esta fase inicial em que a reflexão heideggeriana se dirige para o fenómeno artístico, pensado a partir da essência da Arte, ou melhor, a partir da sua proveniência essencial que demanda pela origem da obra de arte, ao mesmo tempo que faz ecoar, em primeiro plano, o veredicto exposto por Hegel na “Introdução” à Estética em estreita relação com o anúncio nietzschiano da morte da “grobe Kunst” e do nascimento da estética moderna, concebida enquanto ciência que delimita não só as categorias que determinam o que é e não é Arte, bem como os modos da sua criação e apreciação, em derredor de um único ponto: a “experiência‑vivida” (Erlebnis) ou “vivência” em correlação com o postulado de uma metafísica do artista fundada no mais puro subjectivismo. Heidegger insurge-se contra essa ciência que faz gravitar a Arte e o Belo em torno do sujeito, e não em torno da obra e da sua origem, como nos é explicitamente mostrado em UKw, onde o filósofo manifesta um posicionamento sobre a arte que constitui, em si mesmo, uma ruptura radical com a Estética em geral.
3 ‑ Num segundo momento, interessa-nos pensar a Arte a partir do modo como esta se apresenta ao autor na fase final do seu pensamento, revisitada e retocada em função de um outro modo de perspectivação da essência da técnica moderna, que não é mais tecnh ‑ esse modo de pro-dução (poihsiz) inicial que caracteriza a originariedade do trabalho humano ‑ nem tão pouco um modo de revelação ou des-velamento (alhqeia) da jusiz, da Terra-Mãe enquanto fundação e doação original, mas Ge-stell, “com-posição”, “mascaramento”, “pro-vocação”, bem como a Arte enquanto manifestação do Ser como Geviert, (Quadratura), quer dizer, como re-presentação das quatro regiões do mundo: o celeste-terrestre, o humano-divino.
4 ‑ Pensaremos, em qualquer dos casos e sempre, a questão da Arte em função da questão da sua origem, no intuito de compreendermos esse “passo atrás” que nos permite rememorar e renomear o acontecimento primordial de todas as coisas; chegar ao início da aventura primeira do homem com o Ser, ao começo originário do pensar do Ser pela palavra essencial que nos traduz o destino historial do Ser e da essência do homem, à “Grande Arte” como o caminho condutor do nosso estar-aí projectante num Mundo e numa Terra que temos por obrigação conservar e salvaguardar.
II ‑ Estrutura
1. Desenvolveremos a temática em estudo envoltos numa ambiência predominantemente ecológica da salvaguarda da Terra ex-posta e preservada no e pelo canto dos poetas, nas cores e nos traços dos pintores da “grobe Kunst”, partindo, por um lado, do Posfácio de Ukw ‑ texto fundamental para a compreensão do pensar onto-artístico heideggeriano ‑ que é, a um tempo, o ponto de partida e de chegada das nossas análises.
Escrito, sob a forma de uma adenda, o Posfácio tende a re-colocar, recorrendo ao veredicto de Hegel, os pontos fundamentais que sobre a Arte importa pensar; e, por outro, do Suplemento, escrito por Heidegger vinte anos mais tarde, e cujo conteúdo envolve o esclarecimento de um conjunto de questões terminológico-conceptuais de extrema importância para o esclarecimento das teses/questões enunciadas pelo pensador da Terra quer ao longo do Posfácio quer ao longo de UKw.
2. No intuito de tornarmos mais clara a nossa exposição, dividimos o presente trabalho em três partes. A primeira parte, intitulada “Alguns pontos não finais”, destina-se apenas a apresentar genericamente o conjunto de teses e de questões que se nos afiguraram essências para a compreensão do posicionamento heideggeriano, as quais serão respectivamente desenvolvidas e esclarecidas ao longo dos momentos subsequentes deste trabalho, não obstante todas as limitações desta investigação preliminar.
Na segunda parte, debruçar-nos-emos especificamente sobre as duas questões essenciais do Posfácio ‑ a Arte como enigma e a questão da origem/a estética enquanto reflexão sobre a arte e os artistas ‑ seguindo de perto o já referido veredicto de Hegel no que concerne, particularmente, às causas da morte da Arte pela via heideggeriana da des-construção da estética.
Debateremos questões essenciais como o acontecimento da verdade na Arte e pela Arte, a temporalidade/historialidade da Arte, a função historial e ontológica da Arte, tomando como exemplos mais significativos, ao nível da arquitectura, o Templo Grego e, ao nível da pintura, duas obras de Van Gogh, “Um par de Sapatos” e “Meio Dia: Sesta”, enquanto ilustrações privilegiadas do modo de instauração da verdade, onde o ontológico e o histórico se fundem, ao mesmo tempo que se “incompatibilizam”, onde assistimos à ilustração directa das teses centrais sobre a obra de arte: “O pôr-em-obra da Verdade”/o “‘Ser-obra’ como combate entre Mundo e Terra”, a partir das quais fundamentaremos o nosso visionamento ecológico sobre a Arte.
Referir-nos-emos, ainda, aos modos de ser da verdade e ao inseparável jogo de re-união dos opostos, à relação entre a verdade, o belo e a obra, assim como à natureza da relação existente entre verdade e Ge-stell, no intuito de compreendermos o papel habitante da arte na era da técnica moderna.
3. O presente trabalho comporta, ainda, um Apêndice, onde integrámos reproduções ilustrativas dessa “Arte Maior” consagrada pelo nosso filósofo. Escolhemos algumas pinturas de Van Gogh, Paul Klee e Cézanne, pintores eleitos por Heidegger, cujos temas se relacionam directamente com as teses centrais defendidas por autor acerca da Arte. Nelas se ilustra a instalação de um Mundo e o erigir da Terra; são testemunhos vivos da verdade dos entes nelas a-presentadas; são alusões denotativas da época historial que as viu nascer. As palavras dos seus autores são, aqui, a expressão do que é a Arte, bem como da mundivisão específica que, na sua verdade, o artista pôs em obra: “Há muitas pessoas especialmente entre os nossos camaradas (pintores), que imaginam que as palavras nada são, mas pelo contrário, é tão interessante e tão difícil dizer bem uma coisa quanto pintá-la, não é? Há a arte das linhas e das cores, mas a arte das palavras também existe e nunca será menos importante”[1], escreve Van Gogh.
Depois de toda a teorização acerca da Arte e da obra de arte, a que Heidegger nos conduziu, quisemos deixar falar os artistas recorrendo à força de expressão das suas próprias palavras e das suas obras. Como Van Gogh alimentamos “uma firme fé na arte, uma firme confiança em ela ser uma poderosa corrente que conduz o homem ao seu destino”[2]
Como Klee, sabemos que “ver não é suficiente, temos de escutar a pintura” (...), que “a arte não reproduz o visível, torna visível”, e que “o visível é apenas um exemplo isolado e que outras verdades existem, latentes e cada vez mais numerosas”[3]
Talvez possamos corroborar, ainda, a tese de Cézanne segundo a qual “uma forte sensação da natureza ... é a base essencial de qualquer conceito de arte”, um pintor que “abre à arte a inesperada porta que nos conduz à pintura pela pintura”[4], à Arte pela Arte, como Heidegger acrescentaria.
Notas:
[1] Van Gogh, “Carta 134 ‑ 1888”, in Orlindo Pereira, Vincent Van Gogh. Palavra e Imagem, p. 7.
[2] Van Gogh, in William Feaver, Van Gogh, p. 7.
[3] Paul Klee, in Constance Naubert-Riser, Klee, pp. 21, 25-26.
[4] Cézanne, in Constance Naubert-Riser, Cézanne, pp. 40 e 34.
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