quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Projecto de Dissertação de Mestrado, Parte IV, 3.



3. O Veredicto de Hegel e as Causas da Morte da “Grande Arte”

Verificámos, pois, que a “Grande Arte” abandonou o homem, a partir do momento em que a “Vivência” ‑ Erlebnis ‑ passou a corresponder ao modo como a Arte é vivênciada contemporaneamente pelo homem, fornecendo ao mesmo tempo a chave sobre a sua essência. Tornando-se fonte determinante da apreciação da Arte e da sua criação, a Erlebnis constitui, pois, o elemento em que a Arte morre. Mas este morrer é longo; leva mesmo alguns séculos a consumar-se e o “veredicto” emitido por Hegel, enunciado em três proposições fundamentais, é bem claro a este respeito.
Ora, a legitimação incontornável da apodíctica posição heideggeriana sobre a morte da “Grande Arte”, encontra precisamente em Hegel o seu ponto de enraizamento fundamental, nomeadamente nas breves proposições escritas por este filósofo nas suas Lições sobre Estética, com a plena aprovação de Heidegger:
a) “PARA NÓS, a arte já não figura como o modo supremo em que a VERDADE a si mesma proporciona existência”;
b) “Pode certamente esperar-se que a arte se eleve e se aperfeiçoe sempre mais, mas a sua forma deixou de ser a necessidade suprema do Espírito”;
c) “Em todas estas conexões, a arte continua a ser, do ponto de vista da sua suprema destinação, algo que PARA NÓS JÁ PASSOU”[1].
O pensamento emitido por Hegel ‑ que constitui, em si mesmo, um dos principais pressupostos metafísicos[2] do seu sistema filosófico ‑ surge, para Heidegger, como um autêntico veredicto, inevitável e inultrapassável, embora não possamos deixar de constatar que no período posterior à apresentação, por Hegel, da Estética, no Inverno de 1828/29 na Universidade de Berlim, se assistiu à emergência de variadíssimas obras de arte e correntes estéticas não denunciadas e exploradas pelo filósofo do Espírito Absoluto, nessa obra de referência fundamental para a reflexão e categorização da Arte. Porém, Hegel teve a oportunidade de meditar profundamente e até mesmo de argumentar contra aquilo que considera que a Arte não é.
Assim este “PARA NÓS”, quer dizer, segundo Hegel, do ponto de vista do Sistema, que a Arte perdeu a função metafísica que foi a sua, a saber, a missão de “conciliar a natureza e a realidade finita com a liberdade infinita de pensamento”. “A obra de arte, afirma Hegel, solicita o nosso julgamento”, “não vemos mais na arte qualquer coisa que não esteja ultrapassado (...) submetêmo-la à análise do nosso pensamento”. Numa palavra, “A arte está morta”
À luz do veredicto, a expressão “a arte está morta”, significa que:
a) A Arte não é mais do que um objecto de estudo;
b) A Arte é um momento ultrapassado, pelo qual já não podemos
demonstrar retrospectivamente a sua necessidade;
c) A Arte não é mais o meio no qual e pelo qual nós vivemos e onde estamos totalmente imersos.
Ora, a Arte morre por si mesma, em virtude da lógica do seu próprio desenvolvimento interno (e não apenas por ter cedido lugar à Filosofia): da universalidade que lhe é característica e que a determina enquanto tal, mergulha na mais perfeita particularidade, não se interessando senão pelos detalhes mais acidentais, mais ínfimos, fixando-se apenas nos mais profanos e nos mais mesquinhos, perdendo, por último, a visão de todo o interesse universal.
A Arte morre, por outro lado, porque o artista coloca a expressão da sua subjectividade acima do conteúdo. Procura mostrar simplesmente a sua virtuosidade, o seu talento, no intuito de angariar, da parte do espectador, admiração, através da sua obra. A objectividade da obra perde‑se, dando lugar à emergência da mais pura subjectividade que, por sua vez, se traduz na hipostasiação do artista em detrimento da obra.
Revisitado um longo passado relativo às múltiplas e diversificadas concepções sobre Arte como podermos entender o veredicto de Hegel? Porque afinal a questão de partida heideggeriana permanece: “é a arte ainda uma forma essencial e necessária em que acontece a verdade decisiva para o nosso ser‑aí histórico, ou deixou a arte de ser tal? Ou, apesar da Arte se puder aperfeiçoar sempre, já não constitui mais uma necessidade do espírito, nem sequer o modo supremo em que a verdade a si mesma proporciona existência? Trata-se de saber se a Arte é ainda ou se, pelo contrário, já não é mais um modo decisivo de acontecimento da verdade, se a Arte como instauração da verdade continua a ser uma questão que permanece em aberto. A palavra autorizada de Hegel anuncia, pois toda a problemática heideggeriana sobre a Arte.
Tal como Hegel, Heidegger liga, de um modo verdadeiramente inextricável, Arte e História. Defende a posição segundo a qual a Arte é sempre solidária da destinação historial da época que assistiu à sua emergência. Possui um “habitat natural”, um lugar que lhe é próprio e especificamente determinado, constituindo a sua exposição museica uma expropriação ou uma violentação. As obras de Arte são, para Heidegger, como os corpos celestes para Aristóteles: repousam, intactos e absolutamente imóveis num determinado lugar e não noutro no seio do imenso “Céu das Estrelas Fixas”, porque esse é o seu topoz o seu local natural, pelo que todo o movimento que sobre eles seja exercido não é senão uma violência pura e simples.
É por isso que referindo-se a esses entes peculiares que são as obras de arte, Heidegger manifesta-se, sem reservas, contra a sua exposição em Museus, autênticos supermercados de Arte (veja-se, a título de exemplo, o Museu do Louvre), que extraindo as obras do seu topoz originário promovem-nas a puros objectos de comercialização desenraizados da sua história, da cultura do povo histórico que as viu emergir, não mostrando, por conseguinte, a abertura que abrem no momento inicial da sua instauração. Mas, apesar disso, fala-se em obras de arte imortais, ou da Arte como um valor para a eternidade. Trata-se de uma linguagem sem rigor sobre a Arte, de uma linguagem que não toca no essencial do que a Arte é em si mesma; de uma linguagem que não traduz o pensar essencial sobre a mostração da obra e da sua origem.
Coloca-se exactamente o problema da Arte e da sua temporalidade face a um pensar que obnubilou o ser em favor do ente. “Falar de obras imortais, salienta Heidegger, e do valor eterno da arte terá sentido e conteúdo? Ou tudo isto não são mais do que modos de falar semi pensados, numa época em que a grande arte, e com ela a sua essência, abandonou o homem?”[3]. Falar de obras de arte imortais ou do valor eterno da arte afigura-se, de facto, sem sentido ou conteúdo aos olhos do pensador da Terra e do Ser, que visiona este discurso sobre a arte como resultante de um seu pensamento emerso de uma época em que a “grobe Kunst”, assim como a sua essência já não fazem mais parte da habitação humana pela Arte. Pertencem a um passado em que a Arte e o Homem co-habitavam pacificamente com o Ser, a um tempo original em que a Arte não conhecia a sua própria alienação.
É neste sentido que devemos entender as seguintes palavras de Heidegger: “As esculturas de Égira, no museu de Munique, Antígona de Sófocles, na melhor edição crítica, enquanto obras que estão, são arrancadas ao seu espaço essencial. Por maior que seja o seu nível e o seu poder de impressionar, por melhor que seja a sua conservação, a transferência para uma colecção retirou-as do seu mundo. Mas mesmo que nos esforcemos por suprir tais transferências das obras, indo, por exemplo, procurar no seu lugar o templo de Paestum , ou a catedral de Bamberg, o mundo de que estas obras faziam parte ruiu. A subtracção e a ruína do mundo não são jamais reversíveis. As obras não são mais as que já foram. (...) Como aquelas que foram estão perante nós, no âmbito da tradição e da conservação. A partir daqui permanecem apenas enquanto tais objectos. O seu estar-aí constitui ainda, sem dúvida, uma consequência do primogénito estar-em-si, mas já não é esse mesmo estar-em-si. Este esvaneceu-se. Todo o funcionamento das coisas no mundo da arte, por mais extremo que seja o seu desenvolvimento, e por mais que empreenda tudo em prol das próprias obras, atinge somente o ser-objecto das obras. Mas o ser-objecto não é o ser-obra”[4]
O templo de Paestum ou a catedral de Bamberg ‑ essas extraordinárias sínteses de arquitectura e de escultura ‑ são, para Heidegger, os “exemplares” perfeitos da “grobe Kunst”, face às quais o artista apenas serve de via de aparição do ser da verdade da obra, cujo sítio próprio é sempre aquele que “a priori” lhe pertence e que a obra determina, pois só na abertura aberta pela própria obra o ser‑obra da obra se exerce essencialmente enquanto tal. São obras que definem o manifestar-se da constelação ontológica em que Terra-Céu-Homem-Deus se entrecruzam no ponto em que o Ser se apresenta como Geviert, como a “Quadratura”, como o ponto cardeal das quatro regiões ontológicas, qual entrecruzar-se das quatro regiões do Mundo: o mortal‑divino-celestial-terreno.
O Templo espacializa o aparecer do Deus, deixa transparecer através do espaço aberto entre as suas colunas a figura do divino e o homem intui a figura do seu destino histórico singular como povo, ao mesmo tempo que a Natureza, a Terra no sentido de jusiz, revela a sua silenciosa presença através do mármore ou da pedra e do solo onde se ocultam os seus alicerces. A “grobe Kunst” abre o caminho da essência e este abrir-se é concomitantemente receptivo e criativo. O aberto não é, portanto, coisa, ente, algo Verhanden, mas sim reflexo indicador de alguma outra coisa inescrutável que nele apenas se deixa antever.
Porém, a historialidade da Arte não se limita ao facto de ser solidária de um determinado mundo histórico, relativamente ao qual a obra é contextualização e ancorada: a sua especificidade reside mais no facto de ser uma função fundadora desse Mundo. Dizer que a obra de arte abre um Mundo, significa afirmar que ela abre o destino historial de um povo. A Arte dá-nos o nosso ser-aí histórico e a sua função fundadora é, a um tempo, ontológica e historial. Esta perspectivação faz-nos recusar a concepção de Arte como mimhsiz. Por exemplo, “um templo grego não imita nada. Está ali, simplesmente erguido nos vales entre rochedos. O edifico encerra a forma do deus e nesta ocultação (Verbergung) deixa-a assomar através do pórtico para o recinto sagrado. Graças ao templo o deus advém no templo. Este advento do deus é em si mesmo o estender-se e o demarcar-se (die Ausbreitung und Ausgrenzung) do recinto do sagrado. O templo e o seu recinto não se perdem, todavia no indefinido. É a obra templo que precisamente ajusta e ao mesmo tempo congrega em torno de si a unidade das vias e das relações, nas quais nascimento e morte, infelicidade e prosperidade, vitória e derrota, resistência e ruína ganham para o ser humano a forma do seu destino. A amplitude dominante destas relações abertas é o mundo deste povo histórico. A partir dele e nele é que ele é devolvido a si próprio, para cumprimento da vocação a que se destina”[5]
Esta longa, mas importantíssima passagem, faz-nos ver, de um modo claro, a herança hegeliana patente em Heidegger, aqui traduzida na defesa específica da função essencialmente historial da Arte, segundo a qual cabe à Arte guardar e preservar os traços característicos de uma época histórica determinada, a-presentar, trazer à luz não a vivência de um povo histórico, mas a autenticidade do seu ser, a verdade do seu estar, a determinação do seu destino e vocação, mostrar o mundo de onde nasceu e a Terra a partir da qual se ergueu: “a obra que é o templo, está ali de pé, abre um mundo e ao mesmo tempo repõe-no sobre a Terra que, só, então, vem à luz como solo pátrio (der heimatliche Grund). Porém, sucede que os homem e os animais, as plantas e as coisas estejam aí, reconhecidas como objectos imutáveis, forneçam de seguida, acessoriamente, a ambiência adequada ao templo que um dia se acrescenta ao que lá esta´. Aproximamo-nos muito mais do que é, se pesarmos tudo isso de um modo inverso, como condição, evidentemente, de sabermos ver, antes de mais, como tudo se apresenta de outro modo (...)”[6].
É, de facto o templo enquanto templo que, pelo simples facto de ali repousar, naquele topoz, sobre o chão da rocha, que abre a abertura não só do em si do “lugar natural”, mas do “lugar natural” de todas as coisas que nele estão e são des-veladas. O templo mantém-se ali imutável, assistindo serenamente ao fluxo perpétuo de todas as coisas. É imperturbável e indestrutível, porque o seu lugar está lá, para além de toda a destruição provocada pelo tempo ou pelas mãos dos homens. Permanece, perdura no seu lugar sagrado entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses, entre o céu e a terra, conferindo, de cada vez, identidade às coisas em si mesmas salvaguardadas. As Coisas são no templo: nele encontram o seu rosto próprio, a visão de si mesmas no espaço de abertura pelo templo aberto. Porém, esse espaço de abertura mantém-se, embora não eternamente, mas apenas enquanto o Deus não o abandonar.
Paradoxalmente ao que havia sido dito por Heidegger no que concerne à problemática da intemporalidade da Arte[7], esta tese da essencialidade historial da Arte mostra-nos a vigência a‑temporal das obras de arte, bem como a sua autonomia no que concerne às mutações sociais ou a sua independência no que se refere aos gostos e às vicissitudes próprias da situação histórica concreta em que cada obra foi criada. Como poderíamos ousar pôr em causa a eternidade do ser obra da obra que em si mesmo constitui, por exemplo, o Parténon, bem como tudo o que em si se apresenta, o mundo a que alude mesmo comparando-o com a desarmonia estética da Atenas do século XX?. O Parténon em si mesmo dá-se na sua intemporalidade, na sua historicidade, marcada apenas pelo momento inaugural onde se deu o seu brotar enquanto obra. Está aí, e mesmo em ruínas não deixa de denunciar e enunciar o Mundo e a Terra a que pertence. Continua, apesar de tudo, a afirmar o universo de um povo morto, mas que por si mesmo vive, cuja verdade salvaguarda na sua beleza imortal, deixa transparecer a constelação essencial “ser-homem”, para além de todas as interpretações simplistas e perfeitamente exteriores à sua essência, traçadas pelo mundo grego.
A obra de arte não se pode reduzir à mera re-presentação que os homens façam dela, por mais “objectiva” que seja. A obra enquanto obra de arte está obviamente sujeita às múltiplas e possíveis significações dadas pelos homens que a observam. Todavia, não se limita a elas; transcende-as, mesmo nos seus momentos fundamentais. Como sublinha, com extrema acuidade, Irene Borges Duarte: “Sendo ‘feito’ humano (a obra de arte), partilha com a natureza um modo de ‘estar-sendo’ que se resiste a deixar-se capturar sob as categorias do entender e do desejar humano e se revela mais radical e indefinível que o mero facto de tal feitura ou uso possível. Que é esse ‘algo mais’?[8]. É o que a obra nos faz ver, para além do simples ver; o que o nosso olhar consegue captar para além do simples contorno ou configuração dada pela forma; o que o nosso ouvido consegue discriminar para além do silêncio da obra que fala. A Arte convida-nos a “contemplar pensando”, a extrair o véu da beleza que ocultava a verdade aos “antigos”, hoje afastada pela ciência e pela técnica moderna.
Esta tese de fundação historial da Arte parece ser, por vezes, incompatível com aquela que defende a sua função/fundamentação ontológica. Dificilmente veremos como o quadro de Van Gogh, “Um Par de Sapatos “, pode ser dotado da função de fundamento historial, uma vez que é pintado no seu mundo ‑ caso aceitemos a tese heideggeriana, segundo a qual os sapatos pintados por Van Gogh são, de facto, uns sapatos de camponês ‑ se bem que Heidegger não faça propriamente referência, na sua análise, que explicitaremos no ponto seguinte, à eventual função historial da obra de Van Gogh. Resta-nos continuar a perguntar se a Arte enquanto tal possui ou não uma função de fundação historial, ou se se trata apenas de uma função que pode ser considerada como relativa a determinada época.
Voltamos novamente e sempre à questão essencial do veredicto de Hegel: Será que a Arte ainda pode ser, na nossa época, um fundamento historial, ou teremos que dar razão a Hegel que vê a Arte como uma manifestação passada/ultrapassada do Espírito Absoluto? O re-tomar da questão, neste ponto da nossas investigação, faz-nos compreender que é na revelação artística enquanto tal que poderemos determinar a função de fundamento historial da Arte. De facto, quando Heidegger coloca a questão hegeliana sobre a função historial da Arte, percorre de novo o caminho em busca da demanda da natureza ou essência da Arte, que, aliás, nunca deixa de ser o seu próprio caminho.
Partindo da metafísica, ou melhor, da des-construção do seu pensar estético, Heidegger não deixa de a reinvocar constantemente e este reinvocar torna-se mesmo inevitável. Encontramos, de novo, a nossa, quiçá sua, questão: como evitar que Arte não seja solidária da dissimulação metafísica se tal dissimulação é apresentada como determinante dessa mesma época histórica contra a qual Heidegger se insurge e perante a qual, não aponta propriamente uma saída concreta e concretizável? Como é que a Arte, ainda, pode ser considerada como uma revelação do Ser se se insere numa época caracterizada pelo seu esquecimento, se é, ao mesmo tempo dada como indissociável da essência mais profunda dessa época? Qualquer esclarecimento que tentemos encontrar, no interior do sistema heideggeriano, é sempre vago e desviante.
Não obstante, Heidegger reconhece que a decisão final acerca deste veredicto ainda não foi propriamente proferida. Importa ainda e sempre auscultar, com mais precisão, o que se encontra por detrás deste posicionamento do autor da mais fecunda filosofia do Espírito ou da manifestação do Absoluto.
Por detrás do acto argumentativo de Hegel ‑ figura paradigmática que emerge como o grande fundamento no seio desta problemática, em virtude de ser o autor da mais abrangente meditação, pensada a partir da história da metafísica, que o Ocidente revelou no que concerne à essência da Arte ‑ encontramos uma explicação do pensamento ocidental desde os gregos, o qual corresponde não ao des-velamento da Verdade do Ser, mas à já acontecida verdade do ente. Por isso, se alguma vez a decisão acerca do veredicto de Hegel for pronunciada, sê-lo-á a partir da própria verdade do ente e somente a partir dela.
Enquanto esta possibilidade não se der, o veredicto permanece válido, pelo que teremos de continuar a perguntar sobre a verdade e sobre a revelação da verdade na obra de arte, ou pela possibilidade da sua des-ocultação, de molde a podermos meditar sobre a essência da própria Arte perguntando pela origem da obra de arte na tentativa de fazer desabrochar o “carácter-de-obra” da obra de arte, uma vez que o que a palavra origem significa só pode ser pensado a partir da essência da verdade, cujo significado é preciso determinar no sentido que Heidegger especificamente lhe confere.
Torna-se, de certo modo indubitável, que numa teoria da arte cuja base fundante assenta primacialmente na ontologia, jamais tem lugar a concepção que visiona a obra de arte como algo que é dado por intermédio dos possíveis estádios psicológicos do sujeito, tais como, os sentimentos, os gostos ou a sensibilidade. Mas, não será esta a autêntica e legítima teoria da arte? A única que confere ao artista, ao acto de criação e à obra a sua dignidade essencial?
Uma vez que a instauração da estética psicológica fez brotar a morte da “Grande Arte”, a única que Heidegger é capaz de conceber e consagrar verdadeiramente em toda a sua obra, afigura-se como absolutamente necessário fazer regressar a Arte ao seu sentido absoluto e primacial que se relaciona à verdade mais do que à beleza, institui-la essencialmente como saber (Wissen) e não mais como algo que pertence à esfera do que excita a sensibilidade humana.
Viabilizar tal intenção, que não é senão o pressuposto fundamental da tese heideggeriana, consiste em fazer voltar a obra e o artista à sua origem - a Arte - procurar a essência desta na verdade e não em qualquer produção que se oponha à natureza entendida a partir da palavra grega original, isto é, da jusiz..

[1] Martin Heidegger, Ukw, in Holzwege, p. 68.
[2] É exactamente a articulação deste pressuposto metafísico com os outros três que o antecedem que permitem ao filósofo o proferimento de uma tal sentença. Para Hegel a Arte:
1. É um saber: “Existe na arte uma espécie de conhecimento do Espírito Absoluto”. Este conhecimento é somente imediato e não intuitivo, pelo que a arte atinge a verdade absoluta, o em si e por si, por intermédio de uma apreensão dada sob a forma directa ou de sentimento. Por isso, a arte pode ocupar no sistema hegeliano o mesmo lugar que a religião e a filosofia, embora e contrariamente a estas permaneça um saber directo que se manifesta no sensível.
2. É dotada de unidade: a) Do sensível e do espiritual; b) Da natureza e do Espírito; c) Do exterior e do interior.
Daqui resulta que a obra de arte é compreendida como a incarnação de um conteúdo do pensamento numa forma sensível, pelo que a aparência artística não é senão uma ilusão que, contudo, ao invés de ser qualquer coisa de inessencial, constitui o momento essencial da essência da arte.
3. Tem um conteúdo: a religião, o divino. Os deuses ou o Deus são o centro a partir do qual gravita a arte, pelo que o desenvolvimento da arte segue o desenvolvimento da religião, segundo os seus três grandes momentos: a religião da natureza, correspondente à arte simbólica; o politeísmo da religião grega, ilustrado pela arte clássica e a religião cristão, manifestada pela arte romântica, onde a arte propriamente dita encontrar o seu fim: é a religião cristã que torna possível a síntese suprema do Deus-Homem ou do Homem-Deus, a síntese do sensível e do espiritual na interioridade. A era do cristianismo trouxe,por isso, consigo o anúncio do fim da arte, na medida em que, nela, o absoluto subjectivo se revelou tão interiormente que fez escapar qualquer possibilidade de representação sensível, essencial à arte enquanto tal.


Notas:
[3] Martin Heidegger, Ukw, in Holzwege. p.667 - 68.
[4] Martin Heidegger, Ukw, in Holzwege, pp. 26-27 ( o sublinhado é nosso)
[5] Martin Heidegger, op. cit., pp. 27 - 28.
[6] Idem, p. 28.
[7] Cf. op. cit., “Nachwort”, p. 66.
[8] Irene Borges Duarte, op. cit., p. 65 (o sublinhado é nosso).

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