quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Projecto de Dissertação de Mestrado, Parte IV, 2.


2. A estética enquanto reflexão sobre a arte e o artista: em torno do carácter de “ser-obra” da obra

Se se procura descortinar a origem da obra de arte, a sua proveniência essencial, então o que indubitavelmente se persegue é o modo próprio de desdobramento do ser da obra enquanto ente (Seiend) do que é. Ora se a “trindade” obra de arte ‑- Arte ‑- artista não torna a inquirição futurível (pois que inevitavelmente se cai em círculo vicioso), e nem a determinação da essência da Arte é possível através da contemplação comparativa de distintas obras ou da dedução do que a Arte seja a partir de conceitos “superiores”, inevitável é o procurar deslindar o que seja a obra de arte na sua pura realidade. Trata-se, deste modo, de procurar destilar as propriedades da obra de arte em relação a outros entes, pois o horizonte em que primeiramente a obra nos surge é o das coisas que são, havendo que relevar se a obra é coisa (Ding), se diz outra coisa além da coisa que é (allo agoreuei), e é então alegoria, ou se, sendo coisa, a ela está re-unido, adstrito algo de outro, se a obra está em vez de um outro, caso em que a podemos caracterizar como símbolo (sumballein). Aliás, “Alegoria e símbolo fornecem o enquadramento em cuja perspectiva se move desde há muito a caracterização da obra de arte. Só essa unidade na obra, que revela um outro, essa unidade que se reúne como algo de outro, é que é o elemento coisa (Dinghafte) na obra de arte”[1].
Revelando agora a dimensão de tudo o que é de algum modo aparecente, e fazendo-o procurando conectar os termos obra-coisa (Ding-Werk), cedo a reflexão heideggeriana estabelece que o que na obra de arte se joga não cabe na caracterização tradicional (metafísica) do conceito de coisa em sua tríplice dimensão:
a) - A coisa como o suporte (to upokeimenon) de prioridades ou qualidades (ta snmbebhkota) distintivamente marcantes, que fazem com que ela seja este ente determinado e inconfundível. Segundo esta primeira interpretação, a obra de arte não é senão o a-juntamento de qualidades específicas.
b) - A coisa é definida como sendo a unidade de uma multiplicidade de sensações. Neste sentido, a obra assume o qualificativo de aisqhton, que significa o que é perceptível pela sensibilidade, sendo por intermédio dos orgãos dos sentidos que ela se apresenta como presença (Anwesen).
c) - A coisa reduz-se a uma matéria enformada, o que quer dizer que toda e qualquer obra brota como a pura síntese da matéria (ulh) e da forma (morjh). O “lado‑coisa” da obra é manifestamente a matéria de que é composta, a qual se destina a ser enformada pela mão humana. A matéria é o suporte da acção e da criação artística. E a obra de arte não é senão, à luz desta conceptualização, uma matéria enformada, disposta à deleitação sensível do espectador. O artista, por sua vez, é o mero enformador da matéria bruta , consistindo a criação no simples acto de dar forma.
Ora, jamais o complexo matéria-forma, que tem fundamentado toda a Estética Ocidental tão amplamente criticada por Heidegger, faz ressaltar a originariedade da Arte que a obra em si mesma encerra. Aliás, mlh e morjh não são determinações inerentes à essência da obra de arte enquanto tal. Se entendermos por morjh aquilo que dá contorno, que delimitando faz emergir o rosto (eidoz) numa matéria, verificamos que a forma determina a qualidade e a coisa dessa matéria, o que quer dizer que a ligação entre estes dois elementos visa um determinado fim (teloz), delimitando-se esse teloz à utilidade (Dienlichkeit) do objecto.
O complexo matéria-forma faz-nos mergulhar no campo da mais pura tecnicidade, do “instrumentum” (Einrichtung), sendo o ente submetido a um tal complexo não o produto de uma criação, mas de uma fabricação. Demonstra-se, assim, como a dupla matéria-forma, tem a sua origem na essência do útil, entendido como aquilo que é utilizado em vista de um determinado fim, e não mais na obra, enquanto obra de arte. Mas, será que a obra de arte se apresenta, na sua radical essencialidade, como um simples produto de uma qualquer fabricação? Reduzir-se-á a obra de arte a um objecto cujas características são a utilidade e o uso? Para compreendermos o alcance destas questões é preciso distinguirmos, antes de mais, três tipos de entes: a coisa (Ding), o útil (Zeug) e a obra (Werk).
Se estas três determinações insultam a coisa mais do que a captam na sua coisidade, pois que não a apreendem na sua própria incontornabilidade, isto é, no facto de brotar originariamente para a patência a partir do ser, trata-se agora de enveredar por outro caminho e descortinar se o ser-coisa da obra pode apreender-se no ser utensílio (Zeug), esse ente particularmente mais próximo do homem porquanto advém à patenteação por nossa própria produção. Porém, a essência do produto, não reside na sua produção, aspecto pelo que se assemelharia inevitavelmente à obra de arte, mas na sua utilidade, conferida pela sua solidez intrínseca, a sua “fiabilidade” (Verlässlichkeit). O próprio do utensílio é o ser fiável, o poder contar-se com ele, o assumi-lo como o ente-à-mão que é, disponível para o uso do homem. Transparece, pois, que a essência do utensílio não repousa no ser do mesmo, mas na sua reportação à postura existencial do Da-sein, enquanto ser-no-mundo.
O ente enquanto Werk deve ser entendido como distinto dos outros dois tipos de entes, embora manifeste um certo parentesco com eles. É evidente que a obra também é um produto, na medida em que, tal como o útil, é o resultado de uma operação efectuada pela mão humana. Porém, é necessário salientarmos que não estamos a referirmo-nos, em ambos os casos, ao mesmo tipo ou conceito de produção. A produção do útil reduz-se à simples fabricação entendida em sentido meramente tecnicista. Ao invés, a pro-dução (Her-vor-bringen) da obra de arte é entendida como criação, significando criar, trazer à luz o que ainda não se encontra em estado de presença (Anwesen).
A criação, no entanto, jamais é dada como uma actividade artesanal: o artista não é propriamente o artesão, embora os gregos tenham utilizado o termo tecnh quer quando se referiam aos artistas, quer quando se referiam aos artesões, atribuindo-lhes uniforme e indistintamente o qualificativo de tecnithz, parecendo, assim, determinarem a essência da criação a partir do lado artesanal-manual da obra. De notar que tecnh, não significa, neste contexto, nem trabalho manual nem trabalho artístico, nem sobretudo, trabalho técnico, no sentido modernamente atribuído à expressão. Tecnh é pois esse modo de fazer ver o que é, de apreender a presença daquilo que se apresenta,um modo de alhqeia, ou seja, de eclosão do ente.
A tecnh é um modo de alhqeia, ao permitir o desvelamento do que não se produz por si mesmo; desoculta o que ainda não é dado a descoberto perante nós. E é precisamente como desvelamento e não como fabricação, que tecnh é uma pro-dução (Her-vor-bringen). A pro-dução assim apresentada é, radicalmente, poihsiz, que significa fazer abrir a floração, promover o desabrochar (Aufgehen) do ente na sua nudez primacial. Segundo esta perspectiva o “criador” é o poihthz, quer dizer, aquele que faz emergir a verdade, definindo-se a “criação”, por sua vez, como um acto de verdade, e não mais o tecnithz, aquele que fabrica produtos.
Porém, enquanto dada como algo que se basta a si mesma, a obra assemelha-se à simples coisa, repousando plenamente numa espécie de gratuitidade que a sua acção de brotar natural lhe confere. Apesar disso, não nos é permitido qualificar as obras de arte entre as simples coisas. E eis-nos chegados a uma primeira conclusão do que a obra não é: a obra de arte não pertence ao domínio da simples coisa, entendida segundo os moldes de interpretação precedentemente discriminados, nem ao do produto, compreendido como o resultado de uma fabricação. Se a obra de arte por si própria tem suficiência, segue-se que a sua essência jamais pode ser determinada a partir do ser do produto, sujeito à usura que lhe confere a submissão da sua essência às finalidades do homem.
Para evitar que a perspectivação do que seja a obra de arte, a partir da des-construção do conceito de coisa constitua um insulto (Ueberfall) à obra, trata-se de eliminar tudo o que é susceptível de obstar à nossa acessibilidade a própria obra ‑ incluído os nossos enunciados sobre ela ‑ e, primacialmente, fazer revelar a constitutiva instância da obra, abandonando-nos à sua presença imediata (unverstelltes Anwesen). Trata-se pois de silenciar o homem para deixar falar a obra: “Nada mais fizemos do que colocarmo-nos em presença do quadro de Van Gogh. Foi ele que falou. A proximidade da obra transportou-nos repentinamente para um outro lugar que o aí onde tínhamos o costume de estar”[2].
Vemos assim que o que parecia constituir o nexo interpretativo conducente à determinação da origem da obra de arte, a abordagem da realidade “coisal” (das Dinghafte) da obra , é substituído por outra perspectivação tendente a revelar o que está em obra na obra, ou seja, esta deixa de ser questionada na sua espessura ôntica para ser apresentada como um topoz indicador de outra presença, como instância mostrante. Este salto, significará, por sua vez, a eleição de um novo nó problemático que colocará a obra de arte em directa confrontação não já com o seu estatuto de coisa, mas com a dimensão fundamental da verdade. Se aqui se adivinha o abandono de uma “hermenêutica metafísica” e a abertura a outros espaços de perspectivação, conexos com a noção de verdade, mais tarde veremos como o abandono da inquirição pela onticidade da obra e, por consequência, sua propriedade e id-entidade, levantará, no seio da perspectivação heideggeriana, algumas dificuldades. A resolução destas implicará, entre outros aspectos, a cessação da autonomia do sujeito e do processo de criação artísticos enquanto objectos de investigação, com o intento de pensar um novo conceito de Arte que, livre tanto de funções miméticas como expressivistas, e, por conseguinte não mais adstrita ao real já dado como à “experiência-vivida” (Erlebnis) do sujeito, se afirma antes como momento verdadeiramente instaurador e poético.
Em grande parte, o Posfácio e a conferência que lhe é adstrita movem-se em derredor desta des‑construção que não é senão a des-construção da estética da Erlebnis ou da concepção de Arte como “experiência vivida”. Por detrás da concepção heideggeriana está a convicção de que uma interpretação metafísica da obra de arte, longe de a esclarecer na sua essência e origem, antes a perverte na sua constitutiva realidade. Correlato da nossa postura filosófica ocidental, este tipo de perspectivação metafísica da Arte, que o autor, aliás sem suficiente problematização, faz identificar com a Estética, procuraria fazer da Arte uma manifestação cultural sem mais, sempre reconduzível ao homem, procurando dilucidar-se uma caracteriologia que afinal não é mais, para Heidegger, do que a aplicação de valores da civilização, de padrões de auto-avaliação importados do saber teórico, que em nada esclarecem a essencial radicação da obra de arte, de todo descurando a sua fundamentação na problemática ontológica, verdadeiro nexo dinâmico da reflexão heideggeriana.
Segundo o ponto de vista em que o autor se posiciona, a Estética procuraria, então, esclarecer as modalidades de patenteação e juízo do belo, bem como a relação intrínseca insuperável entre os termos autor ‑ obra de arte ‑ espectador, descentrando, deste modo, a reflexão da própria realidade da obra, e esquecendo a sua ancoração fundamental ao plano de fundo despoletador da sua existência própria. Por isso “devemos dar ao termo ‘arte’ e àquilo que ele quer designar um novo conteúdo, encontrando primeiro uma posição originária quanto ao ser”[3].
O afrontamento desta problemática indica-nos que deveremos prescindir, nas nossas abordagens da concepção metafísica da Arte que tomou, no seio do Pensamento Ocidental, o nome de Estética, antes de mais, porque a Estética considera o obra de arte como um simples objecto da percepção sensível, como um objecto da aisqhsiz, isto é, toma a obra “a priori” e definitivamente como um objecto disponivelmente dado. Ao colocar a questão deste modo, a Estética parte não mais da obra, mas do sujeito que exerce o seu olhar sobre o que lhe é sensivelmente dado, e sobre o qual deverá exercer um juízo estético ou, por outras palavras, desenvolver um acto contemplativo. Questionar a partir do sujeito significa não deixar a obra ser obra, mas representá-la e apresentá-la como uma coisa susceptível de provocar em cada um de nós quaisquer estados de alma.
Esta percepção sensível, que Heidegger rejeita incessantemente por não se enquadrar no seu esquema conceptual que postula a passividade do sujeito contemplativo, é denominada pelo termo Erlebnis, que significa “experiência-vivida”, a partir da qual a Estética tradicional pretendia dar a conhecer a essência da Arte. Todavia, jamais o modo como a Arte é vivida pelo homem pode produzir o esclarecimento da sua essência. Considerando-se que a “experiência-vivida” é o princípio de autoridade não somente para a fruição estética, mas igualmente para todo o acto de criação enquanto tal, reduzindo-se, assim, toda a actividade artística à Erlebnis, mergulhamos numa vivência plenamente ilusória, não nos apercebendo que é a “experiência-vivida” o elemento no seio do qual a Arte é lançada na sua própria agonia.


Notas:
[1] Idem, p. 4.
[2] Op. cit., p. 36. Van Gogh confirma a tese heideggeriana quando afirma: “Bem, a verdade é que nós só podemos fazer as nossas pinturas falar” (Van Gogh, “Carta a Theo, Junho de 1?80”. in William Feaver, Van Gogh, p. 24)
[3] Martin Heidegger, Introdução à metafísica, p. 140.

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