quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Projecto de Dissertação de Mestrado, Parte IV, 4.


4. O “ser-obra” da obra como combate entre mundo e terra

“Terra silente onde nem os profetas falam,
terra que prepara o seu vinho;
onde as colinas cheiram a ainda aos Génesis,
não temendo que se desfaça.
Terra por demais altiva para aspirar ao que transforma,
que, obedecendo ao estio,
à imagem do olmo e da nogueira, parece
feliz com o que não muda.
Terra em que só quase as águas trazem novas,
todas essas águas andantes que se entregam,
infiltrando, por entre a aspereza das tuas consoantes
e claridade das vogais que lhe pertencem”

“Terra que canta trabalhando,
terra feliz de labor querido;
enquanto as águas prosseguem cantando,
a vinha tece o seu tecido, gota a gota,
Terra que se cala porque o silêncio das águas
é puro excesso de silêncio desmedido,
desse silêncio que se cria entre palavras,
essa palavras que, aos ritmos avançam”.[1]

Como tinhamos observado a propósito do exemplo do templo Grego, a obra é, em primeiro lugar, a “representação de um mundo” ‑ Aufstellen einer Welt ‑ Aqui o termo Welt não é dado como um conceito análogo à ideia Kantiana de Mundo, não significando, portanto, um simples ajustamento de coisas dadas, numeráveis ou inumeráveis; não é um objecto colocado perante nós para que o consideremos, não é algo de palpável ou de imediatamente perceptível pelos orgãos dos sentidos, ao transcender a tangibilidade fenomenal dos objectos realmente dados. Por Welt, ao invés, entende-se o conjunto característico de pensamentos, ideias, crenças, costumes e sentimentos próprios de uma época histórica determinada. É uma dimensão cultural emergente que caracteriza esta ideia peculiar de Mundo.
O Mundo representa uma existência concreta, histórica e particular. É o local onde se desenrola a história de um povo, é a expressão de uma cultura. Pelo Mundo a obra de arte está ligada, de múltiplas maneiras, aos grandes eventos da vida de um povo. Tem parte integrante no nascer e no morrer, nas suas alegrias e nas suas tristezas. É o espelho sempre vivo e vivificante de uma memória cultural que não se deixa perder no tempo e no espaço. É o monumento consagrado de tudo isso, a expressão mais marcante da vivencialidade de uma época, espelhando a sua alma, a sua essência mais recôndita. Nela o povo toma a verdadeira consciência de si mesmo, encontrando nela o testemunho manifesto da época em que vive. A obra é doadora do tempo, e este deixa nela marcas eminentes da sua presença.
Instalar (Aufstellen) um Mundo é, pois, o que significa ser obra. Aufstellen não designa, porém, uma simples exposição num Museu ou numa Galeria de Arte. Designa o “erigir para consagrar e glorificar”[2]. Toda a obra representa e celebra um Mundo, encarna a civilização da qual nasceu; constitui a época humana de que faz parte, sendo sempre um testemunho, um coisa viva.
Em segundo lugar, a obra é a revelação da Terra (Herstellen der Erde). Ao erigir um Mundo, a obra, longe de deixar desaparecer a matéria, manifesta-a. É indissociável do mármore ou da madeira de que é feita, bem como do céu ou da luz que o ilumina. Toda a obra tem um local natural, um topoz, que a topografia jamais pode percepcionar. Este local é capital para o emergir da obra, e uma vez emersa ela ilumina-o. Todas as coisas deste Mundo são o que são porque se destacam do fundo obscuro que as suporta. A este fundo os gregos chamaram jusiz: instância inesgotável de onde todos os entes emergem originariamente, predominância estável que faz desabrochar o ente na máxima plenitude do seu ser, fundo amorfo onde todas as coisas tomam forma determinada. A um tal fundo fundante, Heidegger chama Terra (Erde).
A Terra que, por essência se desdobra em todas as coisas, simboliza a Natureza, “a matéria‑primitiva”, o fundo (Grund) secreto pelo qual todas as coisas vêm à existência. Só esta análise nos permite chegar à verdadeira coisidade da obra: a obra é bem uma coisa não porque seja uma matéria informada, mas porque pertence à Terra, a partir da qual todas as coisas recebem a sua determinação específica. Instalando um Mundo, a obra faz provir a Terra, esse local onde o homem, dado na sua historicidade, funda o sua habitação no Mundo.
Mas é preciso notar que a Terra (no sentido de jusiz) não se dá como uma abertura na clareira (Lichtung). Bem pelo contrário, enquanto fundo abissal que é surge, por essência, como algo que se fecha em si mesmo, como algo que gosta de se esconder. A Terra é o fundamento oculto, mas essencial a toda o obra de Arte, não havendo obra que não lhe pertença. Longe de se opor à natureza‑ ‑jusiz ‑ a Arte tem esse privilégio, sendo a única, de estar em consonância com ela, manifestando-a como aquilo que não pode ser manifestado. A obra de arte escava até ao fundo os domínios insondáveis da natureza, trazendo-os à luz do dia na sua máxima veracidade, mas nunca mimeticamente.
Mundo e Terra, embora sejam dados distintamente, são, contudo, intrinsecamente inseparáveis: o Mundo funda-se sobre a Terra, e a Terra surge através do Mundo. Repousando sobre a Terra, o Mundo aspira, no entanto, à sua dominação. Mas, a Terra, por seu turno, e enquanto salvaguardante, pretende nela fazer entrar o Mundo para o reter em si mesma.
Afrontando-se, Mundo e Terra travam entre si um combate. Porém, combate não significa aqui discórdia ou disputa. A noção que o termo em si mesmo encerra jamais pertence ao domínio da pura destrutividade. Ao invés, evidencia uma capital positividade: o combate apresenta-se como aquela instância onde o Mundo e a Terra ou, por outras palavras, a Cultura e a Natureza, se tornam si mesmas. Somente neste combate essencial as partes adversárias se elevam à plenitude do seu ser. É nesta elevação que os combatentes afirmam a sua essência, quer dizer, auto-afirmam-se (Selbstbehauptung) numa reciprocidade primordial. Assim, a Terra não pode renunciar à abertura do Mundo se quer ser ela mesma e o Mundo, se quer ser ele-próprio, não pode esquivar-se à predominância da Terra. Este combate tende para o equilíbrio, para a unidade. A limite, o combate não é senão a unidade da diferença no mesmo.
A obra de arte realiza no seu seio o combate original. Aliás, ela é mesmo a primeira instigadora desse acontecimento, em cuja realização reside, de um modo autêntico, o ser - obra da obra. A obra é o palco supremo de uma guerra, ao colocar em equilíbrio a luta incessante de dois elementos aparentemente irreconciliáveis: a existência bruta da Terra e o Mundo cultural do homem. Como bem observou Jean Lacoste “ a unidade que repousa na própria obra, nasce entre o mundo da claridade apolínia do destino do homem, e a obscuridade ‘dionisíaca’ da terra. A plenitude da obra é o fruto de um equilíbrio impossível entre o mundo histórico e a terra inumana”[3]. São estes os traços essenciais do ser-obra da obra.
Erguendo um Mundo e fazendo brotar os mistérios insondáveis da Terra, a obra de arte é a única potência capaz de abordar na mais alta profundidade a excepcionalidade e a misteriosidade do existente, ao promover a plena realização da verdade. Mais do que nenhuma outra actividade humana, a actividade estética faz ocorrer a verdade: “es das Geschehen der Wahrheit”, é a afirmação fundamental. Pretender-se-á significar com esta afirmação que a arte capta a verdade absoluta do realmente existente? É evidente que não. Uma tal verdade, se é que existe, esquiva-se sempre perante as limitações do entendimento humano. O que Heidegger nos pretende dizer é que o artista descobre e constitui a verdade servindo-se de um tipo de inteligência particular: o Mundo da sua época e do seu Povo. Pela arte extrai o véu que cobre a existência em bruto por intermédio de um Mundo que, não sendo universal nem invariável, não poderá chegar sobre uma luz absoluta ou intransitória. A obra de arte “cria” a verdade segundo um Mundo que coopera na sua génese.
No entanto, jamais nos é permitido afirmar que a verdade “criada” pela actividade artística precede o emergir da própria obra, como defendem aqueles que reduzem a obra de arte à expressão de uma ideia previamente existente na mente humana. A verdade revelada pela obra de arte nasce precisamente do conflito estabelecido entre o Mundo inteligível e a obscuridade da Terra: “A Terra não surge através do Mundo, o Mundo não se funda sobre a Terra senão na medida em que a verdade advém como o combate original entre a iluminação e a ocultação (...) Instalando um Mundo e fazendo brotar a Terra, a obra é a batalha onde é conseguida a vinda ao dia do ente na sua totalidade, ou seja, na sua verdade”[4].
Esta passagem faz-nos ver a verdade na sua mais radical e plena significação, indicando-nos que a verdade não surge somente como desvelamento (alhqeia), mas sobretudo como aquilo que desdobra o seu ser no combate entre a clareira (Lichtung) e a ocultação, na adversidade do Mundo e da Terra. As profundezas do seu ser deixam transparecer a reciprocidade adversa do velamento e do não‑velamento. Por isso, também ela é não-verdade, em virtude de pertencer ao domínio do “ainda‑não‑desabrochado”. Nesta concepção de verdade estão invariável e inevitavelmente presentes pares de elementos cujos pólos são opostos: o brilho e a obscuridade; o desvelamento e a ocultação. É somente no afrontamento de uma tal adversidade que é conquistado o espaço de abertura. E a partir do momento em que é aberta a clareira no seio do ente, encontramos o lugar próprio de onde pode emergir a criação (Schaffen) artística, o que nos conduz para a concepção de obra como “ser-criado”.


Notas:
[1] Rainer Maria Rilke, “Quadras do Valais”, in Frutos e Apontamentos, pp. 167 - 211.
[2] Martin Heidegger, op. cit., p. 47.
[3] Jean Lacoste, La Philosophie de l’Art, p. 100.
[4] Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, in Caminhos que não conduzem a Parte Nenhuma, p. 61.

1 comentário:

virgínia além mar floresta vicamf / disse...

adorei, sempre aprendendo contigo
mestrmiga Isabel, filos arte
nos faz bem melhor viver e conviver
parabéns por tuas escolhas e direcionamentos energéticos
rumo a um mundo melhor
abraço de carinho e admiração, tua virgínia além mar -poeta