Não obstante todas as referências que foram feitas relativamente à problemática da criação, aquando da diferenciação entre pro-dução artística e produção artesanal, outros elementos devem ser, de igual modo, salientados para uma melhor compreensão desta temática. Antes demais é necessário fazer notar que a expressão “ser-criado” introduz-nos manifestamente no âmago da relação estabelecida entre o criador e o pro-duto da criação. O que existe de propriamente obra na obra consiste no facto de esta ter sido criada pelo artista e não produzida. Devemos tomar em consideração a actividade própria do artista para encontrar a origem da obra de arte, uma vez que qualquer tentativa de determinar o ser-obra exclusivamente a partir da obra afigura-se como algo completamente impraticável.
Teremos de afastar a ideia de que a relação estabelecida entre o artista e a obra, nos possa conferir o direito de exaltar o “génio” daquele que exerce uma actividade assim determinada. Heidegger é bem claro no que concerne a este ponto, quando afirma que “o ser-criado não deve testemunhar o êxito daquele que tem um tal mister, para dar assim privilégio público ao realizador”[1]. É, de certo modo, decretada a “aniquilação” da presença do artista após o acto de criação, em prol da apologia da sobreposição do criado em relação ao criador. É manifesto que o autor não visiona a criação como o resultado do exercício de uma virtuosidade genial de um sujeito soberano, tal como ela é interpretada pelo subjectivismo moderno. Ao invés, evidenciando uma relação umbilical com a teoria da verdade, a “criação” artística consiste simplesmente em “extrair” (Schöpfen) a verdade do ente e em colocar uma tal verdade em obra.
Se assim é toda e qualquer possibilidade de criação - entendida no sentido de fazer brotar o que ainda não é, significação habitual do conceito - é completamente inviável no sistema filosófico heideggeriano. Se quisermos manter o termo “criação”, teremos de o pensar exclusivamente no sentido de pura representatividade daquilo que se mostra: “criar” não é mais do que um modo de des-velar, de dar a conhecer, de apresentar e representar o Ser na sua verdade; toda a criação é, nesta perspectiva e por analogia com a noção tradicionalmente concebida deste conceito, uma falsa criação e o artista é apenas o mero intermediário entre o Ser a desvelar e a obra que o desvela. A função do artista não é a produção de algo de novo , mas o fazer surgir, o trazer à luz o que já é e permanece em estado de pura latência. O artista é o desocultador, o desvelador do que por si mesmo não se mostra, e a obra é o meio privilegiado dessa mostração, dessa des-ocultação, desse des-velamento. A obra é um texto e a criação é um acto permanete hermenêutico
O artista, enquanto sujeito autónomo e auto-suficiente perante a obra, desaparece completamente para dar lugar ao mero recebedor ou captador da verdade do ser. Situa-se no domínio da mais inerte passividade, não passando de um mero instrumento por meio do qual a verdade do ente é disposta em obra. Todas as características que a dita Estética lhe têm atribuído originariamente, tais como a livre capacidade de imaginar ou criar, de transformar em obra um sentimento ou uma ideia, de produzir originalmente o que ainda não é, são-lhe completamente coarctadas. Por isso, o “ser-criado” da obra consiste, apenas, na constituição da verdade em estatura, isto é, no tomar forma da verdade no ente.
Embora se torne real no curso deste processo de criação , depende a sua realidade deste processo, o “ser-criado” não é suficiente para definir a essência da obra de arte. Em vez de submetermos a obra aos nossos desejos e à nossa inteligência, devemos deixar a obra ser obra, permitindo-lhe que seja realmente o que é em verdade. A esta postura, Heidegger chama vigilância/cuidado ou salvaguarda (Bäwahrung) da obra.
Senão podemos conceber a obra sem ter sido criada, também não podemos conceber o criado sem guardiões, na medida em que é apenas na salvaguarda que a obra se dá no seu “ser-criado” como tal. Esta salvaguarda é essencialmente Saber (Wissen), e este modo particular de conceber o Saber jamais diz respeito à experiência estética individual, jamais se confunde com a simples informação erudita. Trata-se de um saber meditativo que não é mais do que uma preparação prévia e indispensável para o vir a ser da verdadeira Arte. É o Saber assim concebido que pode preparar gradativamente à obra o seu espaço próprio, aos criadores as suas vias e aos guardiões o seu local apropriado. Neste sentido, o saber apresenta-se, por um lado, como um querer, como uma resolução e, por outro, como uma instância superior ao conhecimento do conhecimento.
Salvaguardar a obra consiste em permanecer na verdade do ente que advém em obra. Esta fidelidade à verdade da obra que nos liberta da empresa quotidiana do ente, direccionando-nos para o Ser; longe de isolar os homens, fá-los entrar na pertença da verdade advinda em obra, fundando uma comunidade de homens. Salvaguardar é, a limite, o modo supremo de contemplação, é a verdadeira “atitude estética” heideggeriana. Por contemplação não deve entender-se, contudo, a simples observação ou deleitação perante o objecto. Contemplar significa: dispor-se na verdade advinda em obra, e permanecer atento ao brilho dessa verdade.
A Arte é bem o dispor em obra da verdade do ente pela criação e pela salvaguarda. Criadores (artistas) e guardiões (contempladores) formam uma única comunidade que pertence à essência da obra: “se a arte é a origem da obra, isto quer dizer, que ela faz surgir na sua essência o que, à obra, pertence reciprocamente: a comunidade dos criadores e dos guardiões”[2]. A arte torna-se não mais do que a salvaguarda criadora, criando a verdade na obra, tese que permite a Heidegger ultrapassar a oposição evidente entre a contemplação e a criação, entre o gosto e o génio.
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