Mas, afinal, o que é que se faz obra na arte? A verdade de todo o ente que é, coisa ou produto. O ser do que é chega pela obra e sobretudo por ela ao seu parecer.
É para a explicitação de uma tal problemática que nos induz um dos quadros de Van Gogh, onde podemos observar “Um Par de Sapatos” de camponês. Ao contemplarmos este quadro, podemos efectivamente objectar, que nada existe para ver, para além daquilo que é realmente dado, em virtude de cada um saber perfeitamente o que é um par de sapatos de camponês. À volta deste par de sapatos não existe rigorosamente nada a não ser um espaço vazio, em virtude de não encontrarmos nenhum elemento do seu uso ou da sua utilidade. Então, porque razão devemos contemplar uma obra de arte com o objectivo de nela encontrarmos manifestamente expresso a utilidade de tal ou tal produto assim representado? Colocar uma tal questão perante uma obra de arte, seja ela uma pintura, uma escultura ou uma partitura musical, é pura e simplesmente adulterar não somente a obra enquanto obra, mas toda e qualquer atitude estética possível.
Heidegger situa-se, obviamente, num campo totalmente diferente, vendo naquilo que a obra representa a essência do representado. Somente na obra podemos perscrutar em que reside a essência do útil de um tal ente. A utilidade assim representada supõe, por um lado, a pertença secreta a um Mundo e, por outro, a aliança originária que permite escutar o apelo silencioso da Terra, entendida no seu sentido mais originário, quer dizer, enquanto jusiz. Este Mundo campónio do trabalho, esta pertença à Terra - que o filósofo descreve com um lirismo assaz curioso - constitui precisamente a verdade do útil , a qual apenas o quadro de Van Gogh, obra da consagrada “Grande Arte”, pode efectivamente mostrar. Só ela faz “saber o que é em verdade, um par de sapatos”[1]. Representando um produto, a obra de arte tem esse poder privilegiado de fazer desabrochar a veracidade originariamente pertencente ao seu próprio ser.
Porém, não nos é permitido inferir que a obra de arte consista simplesmente na ilustração do que é um produto. Muito pelo contrário, é o ser-produto do produto que advém à luz na obra. A obra é a abertura que deixa emergir o que é o produto na sua verdade. Nela o ente faz a aparição na eclosão do seu ser, ou seja, na sua verdade. Eis onde reside a essência da Arte enquanto Arte: no “dispor-se em obra da verdade do ente” (Sich-in-Werk-setzen der Wahrheit des Seienden)[2]. Esta assunção da mostração da verdade pela obra de arte, surge na tematização heideggeriana segundo dois modelos interpretativos que podemos consignar nas duas díades: Mundo/Terra, clareira/retraimento. É, a um tempo, no enlaço e no hiato destes dois modelos que a concepção heideggeriana da arte ganha, na nossa perspectiva, a sua mais fecunda peculiaridade.
O que na obra se consigna e apresenta segundo a dicotomia Mundo/Terra está ainda na dimensão não-veladora da verdade heideggeriana. Em rigor, trata-se de perspectivar o que, estando em obra na obra tem relação ao humano, à sua estada na Terra e ao seu desbravar de um mundo, prerrogativa exclusiva do modo de eksistência do Dasein.
Esta definição deve ser pensada a partir do sentido originário do termo grego jusiz, que significa acção de colocar, de obrar e, mais radicalmente, “instalação na abertura”[3]. Assim, Setzen, um dos termos centrais desta concepção, assume, por um lado, a significação de Feststellen, quer dizer, de construir, de deixar surgir ou fazer emergir a obra, de pro-duzir (Her-vor-bringen). O dispor em obra da verdade não é senão o acto de criação da própria obra enquanto obra.
Por outro lado, Setzen toma o sentido de “instituir” que é equivalente à expressão “Zum stehen bringen”: situar em constância. Isto quer dizer que um determinado ente é trazido pela obra à instância (Dastehen) na nítida transparência (das Lichte) do seu próprio ser. O termo “instruir” manifesta que “existe na essência da verdade uma atracção para a obra”[4], por intermédio da qual ela atinge a plenitude do seu ser.
À luz desta perspectivação, em “Um Par de Sapatos”, de Van Gogh, dá-se o instituir do ser sapato do sapato, que nos faz ver o amoldar-se do couro e da sola ao pisar do lavrador que ara a Terra e descansa no serviço que as botas lhe prestam e não a eventual beleza desses sapatos apresentados na obra. Vemos, ao invés, a beleza da servilidade do utensílio em causa que deixa vir ao de cima o desleixo ontológico, o carácter errante da existência humana, o des-encontro do ser-aí empobrecido, sofrido e gasto, mas sempre vivificante e vivificado, pela presença do dom da Terra que nunca se afasta. O tipo de beleza criada pela imagem abriu-nos, manifestou-nos as dimensões ocultas do destino do Ser na vivência com o homem, a essência da arte que se apresenta, por este quadro como a epifania do mundo na beleza dada, justamente, pelo próprio aparecer da verdade.
O instruir espontâneo da verdade na obra, para onde nos conduziu a interpretação do quadro de Van Gogh, corresponde à instalação do próprio ser da obra, uma vez que a verdade é sempre a verdade do Ser. Heidegger faz emergir a ontologia como o único fundamento possível de uma teorização autêntica acerca da Arte. Mas, fazer da verdade a essência da Arte não será desviá-la do campo a que sempre pertenceu, e retirar à Arte o domínio originário da sua ocupação, onde a categoria do Belo emergia como o seu elemento fundamental e fundante? Será que esta perspectivação da Arte nos permite compreender o fenómeno da Arte contemporânea, independentemente das correntes artísticas onde nos possamos situar? São apenas três as referências que Heidegger faz ao Belo e, em nenhuma delas, esta categoria que perpassou toda a discussão da Estética Ocidental, surge com uma relevância específica, tomada por si mesma e autonomamente determinada. Apresenta-se como dada numa relação umbilical com a verdade, que se torna em si mesma a categoria o elemento fundante da teoria da Arte professada pelo filósofo[5].
De notar que o Belo não é concebido como uma qualidade subjectiva, mas como algo de objectivamente dado, como uma qualidade que não pertence ao sujeito que contempla a obra, mas como uma característica que o objecto possui em si mesmo, a qual é visionada pelo sujeito no momento de eclosão da verdade: “A luz do aparecer da verdade em obra é a beleza. A beleza é um modo de eclosão da verdade”[6]. O Belo é o “instrumento” disposto ao serviço da verdade, o modo próprio da verdade se apresentar em obra. A limite, funde-se com a própria verdade, perdendo o seu estatuto próprio no seio da obra. A beleza não se encontra mais ao lado da verdade; ela é a luz da própria verdade que faz ver o Ser. Considerado, nesta dimensão, o Belo não é em si mesmo relativo ao prazer estético, mas apenas àquilo que reside na forma (morjh) do objecto, aquilo que abre a clareira a partir do Ser e que em virtude de tal abertura o faz ver. O Belo não tem mais um valor estético, mas ontológico.
A a-presentação na e pela tela de “Um Par de Sapatos”, pintado por Van Gogh em 1887 ‑ exposto no Baltimore Museum of Art, à disposição de todos os olhares e à mercê de todo o tipo de interpretações e aos múltiplos modos possíveis de contemplação consoante os óculos com os quais a tela é perspectivada ‑ é única, inconfundível ou irredutível, não existindo, portanto, qualquer outra representação ou apresentação que se assemelha a este quadro sempre em aberto, enquanto ente que alude e denota o mundo campónio do trabalho da terra que desde sempre fascinou o pintor e o filósofo que, como ninguém, mostrou as cores da terra na sua pureza originária, sem, no entanto, copiar a Natureza, mas deixando-se apenas guiar por ela, como bem exemplificam as múltiplas Naturezas‑Mortas do fecundo “Período Francês Inicial” sob o signo da “luz crua do sol”.
O objecto apresentado, o mundo a que alude e a terra que exemplifica; a simbolização do trabalho da terra que em si mesmo encerra, a metaforização da vida campónia e a expressão que dessa vida capta são um absoluto irrepetível, não particularmente em virtude do objecto apresentado, mas sobretudo pela mostração de um estilo que se manifesta numa singularidade irreiterada e irreiterável: o traço, a cor, a pincelada estão aí (no quadro e na mundivisão que nele se dá) na sua mais íntima e pessoal especificidade, que não é senão um modo de singularidade do pintor e da obra se darem universalmente.
Este posicionamento não nos induz, porém, a visionar a pintura de Van Gogh ou a Pintura, à luz de um subjectivismo irremediável que permita estabelecer a apologia do primado do artista sobre a obra. Aliás, defendemos que artista e obra são dados numa relação cronológica e ontologicamente dialéctica que extravasa a própria morte do artista, cuja presença é sempre marcada pela simples presencialidade da obra.
Van Gogh pintou os sapatos porque eles lá estavam. Não são um objecto ou coisa mental, nem tão pouco uma figuração imagética ficcionada pelo artista, mas os sapatos, aqueles sapatos colocados num topoz que lhe é próprio, que constitui o seu “habitat natural” acolhido e re-colhido, essencialmente, na obra.
Van Gogh consegui o mérito de distinguir não propriamente a beleza dos sapatos, mas o carácter especifico deste ente particular. A bota com laço por fazer e com a língua pendendo para a frente toca a sua companheira colocada de costas e de cabeça para baixo, cujos reforços de metal não se cansam de brilhar. São um par inseparável, atraem-se um ao outro como todos os opostos. Unidos um ao outro co-habitam umbilicalmente na mesma esfera existencial. Este tema apresenta-se-nos como uma re-presentação do próprio Van Gogh que acreditava, sem reservas, no caminhar, tal como Heidegger observando-se a si próprio como um “pintor peregrino, entorpecido e pertinaz”, seguindo, por vezes, a via dos “Chemins qui ne mènent nulle part/entre deux prés”[7], que experienciou múltiplas vezes o que significa estar nos Holzwege.
Aliás, a vida não é senão a jornada de um peregrino, estranho na Terra, uma grande caminhada desde a Terra até ao Céu, que as gastas solas de “Um Par de Sapatos”, testemunham na sua veracidade: “Pela estrada segue um peregrino, bordão na mão. Já há muito que tem vindo a caminhar e está muito cansado. E agora encontra uma mulher, uma personagem escura que nos faz pensar nas palavras de S. Paulo”, escreve Van Gogh[8], o colorista para quem nada parecia mais pacífico do que o amarelo e o azul, nada mais indicativo “dos poderes da solidão” do que o verde malaquite, o enxofre ou o vermelho. Saído do texto e da ilustração dos seus sermões, Van Gogh viu-se dominado por uma linguagem que o arrebatou por ser universal. São as cores dos girassóis, dos lírios, do sol, das estações do ano ou das amendoeiras em flor, que o fascinam, cores com um conteúdo particularmente simbólico e extraordinário, com impacto directo no fino olhar do espectador.
O Van Gogh pregador e o Van Gogh pintor, unem-se num só sujeito na produção criadora que é a arte, que, ao contrário dos outros pintores, sempre pregaria como um amador, mas com urgência de salvar, pelo que o seu artista ideal apresenta-se como aquele que “vivia serenamente como um artista maior que os outros artistas, criando a partir do mármore e do barro tal como da cor, trabalhando a carne viva”. E Cristo afigura-se-lhe como esse artista que renunciou a tudo por “uma básica e simples vida”[9], e não apenas por uma pura abstracção, deixando as próprias coisas falar. Eis a grande tarefa do pintor, do artista: “Bem, a verdade é que nós só podemos fazer as nossas pinturas falar”[10], sem nunca podermos falar por elas.
Um dos lados da Geviert heideggeriana, o humano e o divino, espelha-se no efémero percurso do artista que encontra no seu trabalho algo a que se pode dedicar de corpo e alma, que o inspira e que confere sentido à sua própria vida. Vincent demonstra uma “firme fé na arte, uma firme confiança em ela ser uma poderosa corrente que conduz o homem ao seu destino”[11], função que a chamada arte moderna deixou de ter para Heidegger: “quero reafirmar que não vejo a onde apontam as vias da arte moderna, tanto mais que continuo obscuro, onde é que, para a arte, está aquilo que lhe é próprio, ou pelo menos o que ela busca”, afirma o filósofo na entrevista concedida à revista alemã Der Spiegel[12].
Talvez pareça ao leitor que os modos interpretativos a que nos conduziu “Um Par de Sapatos” nos afastem do cerne da exegese artística heideggeriana que, como qualquer outra, emerge como uma interpretação possível, apenas validada pela sua própria legitimação fundante. Porém, tal como Van Gogh, Heidegger fixa-se no trabalho da terra feito pelo camponês que, após a longa caminhada de um exausto dia de trabalho, descalço repousa depois do meio dia, sob as grandes medas de trigo, rodeado da palha em desordem, do par de sapatos e do par de foices, juntos em repouso. Aqui não é linguagem do pintor que fala mas a linguagem das cores. É a linguagem camponesa que agora emerge, a partir da sua concentração em momentos nos quais o trabalho da Terra é plenamente dignificado e profundamente respeitado.
A pintura “Meio-Dia: Sesta (a partir de Millet)”, é o grande complemento interpretativo, não apresentado por Heidegger para a compreensão de “Um Par de Sapatos”. Datado de 1880, esta magnifica pintura mostra a paz feliz, a serenidade campónia após horas produtivas, o contentamento básico da ligação à terra, da sua salvaguarda e preservação originária. Neste quadro, como em “Um Par de Sapatos”, situamos o ponto de encontro, o momento de união entre o pintor e o filósofo, quais seres errantes vivenciadores de uma caminhada feita sob a base de um par de sapatos cada vez mais gastos e carcomidos, símbolos da fascinação do dizer da terra pela pintura, essa linguagem que penetra o ser de cada ente nela re-presentado. A fé na arte satisfaz as exigências destes peregrinos que constantemente progridem numa busca constante até ao ser verdadeiro. A arte não é propriamente um meio, mas um fim em si mesmo, a que o pintor e o filósofo se dedicam de corpo e alma, encetando pela prática constante de des-ocultar o que se situa para além da trivialidade da existência não ultrapassada pela escuta comum do homem desatento ao apelo do Ser.
A arte transporta Van Gogh e Heidegger para as arrebatadoras imagens inserida na vida do camponês, de crescimento, de colheita e de renovação, que o pintor expôs magnifica e inteligentemente nas suas pinturas e o filósofo nas suas reflexões sobre a arte.
“O Pátio do Carpinteiro e Roupa Branca” (1882), “A Casa Amarela de Arles” (1888), “Vinhedos Vermelhos em Arles” (1988), “Um Par de Sapatos” (1890), para citar apenas alguns exemplos, cada campo, cada árvore, cada pessoa confrontado com intenções de ser retractado, significa tão-só a tentativa de captar essências, de auscultar a origem das coisas, de as exprimir tal como são em si mesmas e não apenas como parecem ser. O pintor capta a realidade, pelo que a presença de um par de botas, dos girassóis, da rígida cadeira, da aldeia a esvair-se sobre a chuva é, a um tempo, ilustrativa e iluminatória.
O olhar de Van Gogh, a sua apaixonante celeridade e o seu radioso uso do azul cerúleo, laranja, vermelhão, cor-de-rosa, amarelo berrante, verde berrante, cor de vinho berrante ou violeta, penetra-nos na intimidade das coisas, tornando-as próximas, pelo que somos capazes de captar a sua essência orgânica dada por esta linguagem, a pintura, que não se limita a copiar o mundo e a terra, mas, sobretudo, a exprimi-los na sua nudez primacial. Por isso, a única coisa que conta é a “força da expressão de cada um, afirma Van Gogh, mas desde que essa expressão produza representações “mais verdadeiras do que a verdade literal”.
E as cores, o traço, simbolizam essa verdade mais do que literal de que o pintor fala reiteradamente. O amarelo, por exemplo, representa “o expoente da claridade e do mar”, como o autor afirma sobre “A Casa Amarela” (1888), na qual esperava estabelecer uma comunidade artística. A cor na pintura de Van Gogh, torna-se de facto fundamental, nunca sendo aleatoriamente escolhida, mas em função de um estudo analítico das próprias cores que a Natureza nos faz ver. Jogando com as cores, a pintura aparece como um poderoso meio de expressão, ao permitir dizer, a um tempo, coisas delicadas, ao deixar falar um cinzento ou um verde suave no seio da nudez das próprias coisas. E este dizer da pintura é o dizer do que é; e o pintor sente como ninguém o poder da cor.
Existe na pintura qualquer coisa de infinito, qualquer coisa verdadeiramente admirável que permite exprimir de uma maneira sublime uma atmosfera tal como há nas cores coisas escondidas, como a harmonia ou o contraste que só por elas são expressas de uma maneira mais autêntica. É isto que permite ao pintor, através do jogo das cores pro-duzir qualquer coisa que tenha alma. Não obstante olhar para a tela, em branco, com uma certa angústia e descontentamento, apesar de ter dentro de si bastante presente essa maravilhosa Natureza para que possa ficar contente de ver na sua própria obra um eco que o impressiona, de ver que a Natureza lhe apresenta qualquer coisa, que quer falar consigo, cabendo-lhe apenas tomar nota da sua mensagem.
Desse discurso da Natureza, da Terra, para com o pintor fica sempre qualquer coisa do que o bosque, a praia, ou a figura dissecam, não numa língua domada ou convencional, mas na língua que nasceu da própria Natureza, que fez sentir ao próprio pintor, bem como ao poeta e ao filósofo, no interior de si mesmo, o poder de criar, de fazer quotidianamente qualquer coisa, que o evade, que o extrai das coisas que vê e que lhe falam, que lhe dirigem constantemente o apelo de fazer alguma coisa que tenha alma.
Van Gogh é o pintor da Terra, do trabalho da Terra, tal como Heidegger é o pensador da Terra. Por isso não se cança de afirmar: “Quando digo que sou pintor de camponeses, é assim mesmo na realidade e verás melhor com a continuação que é aqui que me sinto no meu elemento. (...) Misturei-me tão intimamente na vida dos camponeses, à força do os ver continuamente a todas as horas do dia, que realmente não me sinto atraído por outras ideias”.[13]
Van Gogh apresenta a Arte como verdade, tal como Heidegger. Afirma como grande tema da sua pintura os trabalhos do campo, a alma própria do camponês tal como ela se desenvolve quotidianamente no contacto com a Terra, pano de fundo onde se move grande parte do quadro conceptual da filosofia heideggeriana e da sua perspectivação sobre a Arte. A Arte é, pois, por essência, Wahrheit, Verdade. Significará uma tal afirmação que a obra de arte é apreendida como cópia ou como reprodução mimética do real? Ou será que a obra de arte consiste numa simples representação de uma ideia que habita genialmente na mente daquele que a cria? Tanto um como outro postulado, que predominaram em algumas épocas da História da Estética, jamais têm lugar no pensamento heideggeriano. A sua noção de verdade, bem como a de criação, encontram-se situadas muito para além do que é entendido como representação ou cópia da natureza.
A concepção de Arte como mimesiz está completa e definitivamente fora de questão. Todavia, também não se trata de fazer renascer a concepção tradicional de verdade como conformidade a um objecto, como uma “adaequatio”, como a entendeu a Idade Média, ou como omoivsiz, segundo o entendimento de Aristóteles. Verdade significa, aqui, “fazer-provir” (Ver-an-lassen) o que está em estado de latência à não-latência. Ver-an-lassen diz respeito à presença de tudo o que aparece, no sentido de pro-duzir (Her-vor-bringen), sendo o pro-duzir o único meio pelo qual o que é oculto chega ao estado de não-ocultação. A um tal acontecimento dá-se o nome de desvelamento - alhqeia , Wahrheit. E por desvelamento entende-se o vir-à-luz do Ser. É esta a essência da verdade.
No entanto, “a verdade, escreve Heidegger, como clareira e ocultação do ente, acontece na medida em que se poetiza. Toda a arte, enquanto deixar-se acontecer da adveniência da verdade do ente como tal, é na sua essência Poesia. A essência da arte, na qual repousam simultaneamente a obra de arte e o artista, é o pôr-em-obra-da-verdade. A partir da essência poetante da arte acontece que, no meio do ente, ele erige um espaço aberto, em cuja abertura tudo se mostra de um outro modo que não o habitual”.“(...) a poesia é aqui pensada num sentido tão vasto e, ao mesmo tempo, numa união essencial tão íntima com a linguagem e a palavra que tem de permanecer em aberto se a arte, e mais propriamente em todos os seus modos, desde a arquitectura à poesia, esgota a essência da poesia”.[14]
[1] Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, in Caminhos que não conduzem a parte nenhuma, p. 36.
[2] Martin Heidegger, op. cit., p. 37.
[3] Martin Heidegger, op. ci., p. 68.
[4] Martin Heidegger, op. cit., p. 69.
[5] A primeira referência ao Belo encontra-se na p. 27, a segunda na p. 62 e a terceira na p. 92, da edição da obra supra citada.
[6] Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, in Caminhos que não Conduzem a parte Nenhuma, p. 62.
[7] Rainer Maria Rilke, Frutos e Apontamentos, p. 216.
[8] Cf. William Feaver, Van Gogh, p. 6
[9] Cf. op. cit., p. 5.
[10] Van Gogh, “Carta a Theo, Junho de 1980”, in op. cit., p, 24.
[11] Cf. William Feaver, op. cit., p. 7.
[12] “Já só um Deus nos pode ainda salvar” ‑ entrevista concedida por Martin Heidegger à Revista alemã Der Spiegel em 23 de Setembro de 1966 e publicada no nº 23/1976, in Filosofia, Vol., Nº 1/2. Outono’89.
[13] Cf. Orlindo Gouveia Pereira, Vincent Van Gogh. Palavra e imagem., p. 95
[14] M. Heidegger, UKw, in Holzwege, pp. 59 e 62.
Sem comentários:
Enviar um comentário