O retorno às coisas e a questão da origem: As determinações essenciais da Arte e da Técnica
Através da obra abre-se o Mundo de um povo histórico e revela-se a Terra na sua dimensão ocultante/des-ocultante, que indica e desprende o olhar cativo para o outro lado das coisas, para o começo, para o retorno às coisas e ao momento da sua proveniência essencial.
Esse retorno às coisas, à origem, aparece aqui como o caminho do des-velamento essencial. Aliás, a interpretação heideggeriana constitui esse mesmo caminho, excluindo todos os caminhos anterioremente percorridos pelos pensadores que fizeram a história da Estética, a história do pensamento metafísico ocidental marcado pelo esquecimento do Ser, que Heidegger pretende renomear, essencialmente, regressando à origem do pensar e do dizer do Ser, à origem desses momentos excelsos da poesia pensante inaugurada pelos gregos num tempo outro, num tempo inaugural onde o ser do ente era dito na sua autenticidade radical.
O segundo Heidegger é o da fidelidade a esse retorno, a esse apelo que as próprias coisas enquanto tais nos dirigem incessantemente; é o da fidelidade ao mundo grego anterior ao nascimento da metafísica. Mas, as “coisas” de que aqui se fala não se apresentam como “objectos” de uma consciência transcendental, à maneira husserliana. São aquilo que se dá no seu pleno desabrochar, num florir de um tempo inaugural a partir do “abrigo” da Terra.
É verdadeiramente admirável a confiança que Heidegger depositou na fase inicial do pensamento grego da Terra, qual fundamento inesgotável e origem de todas as coisas, qual des‑velamento abrigante, prevenindo-nos que o destino que foi aberto há mais de vinte séculos contém, ainda, em aberto um conjunto de possibilidades, a partir das quais as nossas decisões hodiernas se tomarão.
Depois do aparecimento da técnica, última possibilidade da metafísica, o único caminho que autenticamente permanece para nós em aberto é o da habitação poética da Terra, que corresponde à habitação originária do homem degenerada pelo advento da técnica dos Tempos Modernos, embora o abismo, a catástrofe e a crise se tenham instalado nesta civilização que perdeu o sentido do começo e a dimensão da importância de permanecer no abrigo da Terra aberto pelas coisas dadas no seu momento de instauração inicial.
Sófocles já nos havia lançado neste caminho pelo exposto no segundo coro de Antígona, em particular no V. 332[1] da Estrofe I: “Polla ta deina kouden anqrwpon deinoteron pelei“, quer dizer, “Múltiplo o inquietante (deinoteron), nada contudo para além do homem, mais inquietante”. O termo a destacar é deinoteron, adjectivo comparativo de deinoz, correspondente ao termo alemão “Unheimlich”, comummente traduzido por “inquietante”. Porém, bem mais do que inquietante, “Unheimlich” significa, no seu sentido mais radical, o “fora-do-Ser”, o “fora-de-casa” e, a limite, o “fora‑da-identidade”. Apenas por intermédio deste simples termo, deinoteron, Sófocles recupera a originariedade da própria origem: o que é terrível, o que provoca pânico no seio da existência, enquanto traço fundamental da “predominância do prepotente”; é o “violento conhecido como aquele que emprega a violência”, sendo a violência o traço fundamental do Dasein. É a própria “actividade de violência” (Gewalt-tätigkeit), esse modo de agir humano contra o Mundo que se manifesta deveras insuficiente e ingrato, até mesmo imoral, para um ser puro; que se apresenta como terrível, como totalmente adverso a qualquer tentativa dignificante da essência do homem.
Falar de inquietude humana não é senão mencionar a condição trágica do homem no seio da existência. Mas trata-se, aqui, de uma inquietude que não é mais tomada no sentido vulgar daquilo que impressiona a sensibilidade, mas como “isso” que exclui o homem para fora da quietude, do familiar, do habitual e, em última instância, para fora de si mesmo. Ser inquietante, podemos afirmá-lo, significa expulsar-se dos limites impostos pela trivialidade da existência, rebater o público como local da dimensão realizante do seu ser próprio. O inquietante é, a limite, o extirpado do seu ser mergulhado nas aparências, o desterrado, o que habita poeticamente sobre esta Terra assim dominada.
Neste começo ‑ onde reside o ser mais inquietante do inquietante, cuja mostração primordial só à Arte cabe, no contexto da obra em análise ‑ a Terra é confrontada com o Mar, cada um a seu modo como prepotentes (deinoz), lutando um contra o outro. E, “enquanto vivente, o homem está inserido na prepotência do mar e da terra (a suprema divindade). É sobre esta vida que roda sobre ela mesma, mas que não habita dentro do seu próprio círculo (...) que o homem atira os seus laços e as suas redes. A toda a ordem ele tenta impor os seus jogos”[2] ‑ por vezes destruidores e esmagadores da ordem inerente à Natureza.
Perante tal destrutividade do reino natural, que a obra preserva e salvaguarda, devemos recusar qualquer posição historicista da crítica ao progresso e manter, com Heidegger, a posição seguinte: como os pré-socráticos, Sófocles sabe que é na origem que se situa a enormidade do homem, pois, o “começo é o que há de mais inquietante e de mais violento”[3].
O nosso vandalismo ecológico não é mais do que uma consequência degenerada e inevitável desta inquietante estranheza inicial que, bem como o poder que ela engendra, precede o homem. Ele é “o mais inquietante porque se refugiou num começo, no qual todas as coisas, a partir de um excesso de riqueza, desembocaram conjunta e violentamente no prepotente”[4]. A inquietude originária encontra o seu fundamento primacial no Da-sein historicamente determinado por um começo, cuja característica principal é ser “Un-heimlich”.
Embora o carácter deste começo seja inexplicável e não nos permita, por isso, desvendar o enigma que a Arte é em si mesma, talvez possamos afirmar que é nesta mesma inexplicabilidade que reside a grandeza do conhecimento histórico da humanidade de todos os tempos des-velado e ocultado pela obra de arte. Não podemos, de facto, obnubilar que a história da humanidade ‑ em grande medida dada a conhecer pelas obras de arte que revelam, a um tempo, o Mundo e a Terra que as viu nascer ‑ não tem sido senão a luta do homem contra o Ser entendido no seu sentido primordial de jusiz. Todos os desastres ecológicos cometidos pelo homem, anunciados neste segundo coro, são provenientes de uma colisão ontológica inicial. E é inevitável que a violência contra o poder dominante do Ser, tenha um efeito destruidor.
Antecipando as correstes ecológicas dos nossos dias, a defesa heideggeriana da santidade do meio ambiente, consagrada pela “Grande Arte”, e o que deve ser a nossa missão de custódia da Terra e dos organismos animais, não se baseia nem na pseudotecnologia nem tão pouco no radicalismo político. Aliás, quando Heidegger cita as razões da existência nos seus contornos reais da Terra, quando traz à luz a lembrança da vida autónoma da matéria orgânica e inorgânica, quando identifica a criação e a edificação autênticas como trazer à presença energias e verdades ocultas, está a pisar um terreno rigorosamente filosófico que envolve, sem dúvida, uma crítica ao conceito de técnica tomado como um todo, a qual não faz mais repousar a sua essencialidade o sentido originário de tecnh, seu fundo e fundamento inicial.
Originalmente, tecnh tinha o seu lugar central no complexo de significações e percepções irradiadas pela jusiz ‑ o ingressar no Ser radiante ‑ e pela poihsiz ‑ a produção (Her-vor-bringen) que faz abrir a floração e promove o desabrochar (Aufgehen) do ente na sua nudez primordial ‑ sendo, por isso, dada como um modo de alhqeia , quer dizer, o que des-vela o que não se produz por si mesmo, o que des-oculta, o que não é dado a descoberto perante nós, termo comunmente traduzido tão só por “Verdade”. Enquanto tal tecnh proclamava, para os gregos uma compreensão da primazia das formas naturais e, não menos do que a Arte, significava dar ser verdadeiro e luminoso àquilo que já era inerente na jusiz.
Tomada neste sentido, tecnh não é propriamente sinónimo de Arte, nem mesmo de técnica, mas de “Saber”. E por “saber” entende-se a “visão primeira e constante para além do subsistente” e, mais radicalmente, “o dispor em obra o Ser como ente que seja sempre tal ou tal”[5], o fazer ver o que é, o apreender a presença daquilo que se paresenta.
Todavia, este significado original do termo foi degradado com a fatal revolução de valores implantada a partir de Platão. Se a técnica do agricultor ou do camponês pintado por Van Gogh, quando a existência rural ainda estava em harmonia com o Mundo, não se apresentava como uma pro-vocação da Terra, a represa que atravessava a corrente viva do rio é, pelo contrário, uma escravização e uma des-construção. As energias, os lineamentos naturais do rio, são forçados a colocarem-se ao serviço escravo das turbinas, através de aberturas artificiais; a flora e a fauna são arruinadas no reservatório inerte. Heidegger qualifica este procedimento levado a cabo pelo dito progresso da ciência/técnica moderna como “Ungeheure”, quer dizer, como algo absolutamente monstruoso, enorme, mas quiçá ao mesmo tempo, colossal e extraordinário.
Não obstante a ambiguidade significante que “Ungeheure” encerra em si mesmo, o termo reveste-se, neste contexto, de uma força verdadeiramente drástica, denotando o violentamente monstruoso (deinoteron). É a provocação (das Herausfordern), que distingue o significado original de dar vida e enriquecer a vida de técnica, do sentido e usos modernos da tecnologia, tomada como modo de exploração drasticamnete descontrolada da Mãe-Natureza, já não respeitada, nem dignificada, mas absolutamente esgotada em nome dos egoístas e irracionalistas desejos manipuladores do Homem moderno.
Desde a engenharia romana, a tecnologia ocidental não tem sido uma vocação, mas uma pro‑vocação, um imperialismo face à Natureza. O homem desafia a Natureza, subjuga-a, impõe-lhe, dramaticamente, a sua vontade desenfreada. Se os resultados obtidos têm sido fantásticos, o preço por eles pago jamais o é. E Heidegger, tal como Sófocles, esse arauto da obra de arte poética original, está bem consciente disso. Porém, o chamado homem moderno parece ter perdido, quiçá por mero comodismo, a consciência da natureza progressiva-regressiva do tão proclamado progresso, face ao qual perdeu a dimensão da necessidade “de fazer um progresso da ideia de progresso”. Aliás, “o progresso deve deixar de ser uma noção linear, simples, segura, irreversível, para tornar-se complexa e problemátrica. A noção de progresso deve comportar autocrítica e reflexividade”, como lucidamente observou Edgar Morin na obra Ciência com Consciência[6]
Entretanto, compreender esse processo da falsa técnica, que teve como resultado imediato o “mascaramento” ‑ Ge-stell ‑ do Ser e fez de nós seres desamparados da Terra, ao colocar a raça humana à beira da devastação ecológica, é, ao mesmo tempo, compreender que a salvação é possível, ou melhor, deve ser possível. É na própria extremidade da crise moderna, anunciada muitos séculos antes por Sófocles, no próprio tempo do mecancismo niilista, qua a esperança se avista. Como afiram Hölderlin , com uma lucidez misteriosa e transparente, “Nah ist/Und schwer zu fassen der Gott./ Wo aber Gefahr ist, wächst/ Das Rettende auch.” ou seja “Perto está,/ E difícil de prender, o Deus./ Mas onde há perigo, cresce/ Também o que salva.”[7].
Esta é precisamente uma das questões centrais colocadas pelo filósofo no Suplemento de UKw, no qual a problemática da Ge-stell emerge ligada à questão da verdade e da produção criadora, termo utilizado pelo último Heidegger para caracterizar o modo de aparição da técnica moderna, tão essencial como a verdade, para a compreensão do pensar heideggeriano sobre a Arte; tão essencial como a noção de produção criadora que não é aqui sinónimo de um obrar a partir do nada ou até mesmo do já existente, mas um receber e não um retirar ou um extrair no interior da referência à des-ocultação.
A palavra Ge-stell que emerge, neste contexto, como a reunião da produção, ou se preferirmos, como o deixar vir ao relevo de uma presença num traçado como contorno ou limite ‑ peraz ‑[8], não constitui proprimanete uma limitação do ente ou um bloqueio do seu ser. O termo grego peraz, no seu sentido originário, não restringe. Ao invés, é precisamente o que permite trazer ao aparecer o próprio presente presentificado enquanto produzido, ligando-se assim a Feststellen, “fixação”, que afasta o sentido moderno de “estatuir” ou de “aparelhar”. Antes de mais diz-nos que o Ser como Ge-stell, assim determinado pelos “Tempos Modernos”, “provém do destino ocidental do ser e não foi excogitado pelos filósofos, mas antes dispensado aos que pensam”[9]. Se Ge-stell não significa propriamente aparelho ou aparelhagem, aclara, contudo, o sentido de morjh como forma (Gestalt). Usado como essência da técnica moderna deriva, pois, do deixar estar adiante experienciado pelos gregos da poihsiz. pelo que a significação e lugar ocupado no pensamento artístico heideggeriano não pode ser desligado da sua concepção de Arte e de obra de arte.
Enquanto traço essencial da técnica moderna, Ge-stell apresenta-se como a pro-vocação e o mascaramento para tudo colocar em segurança; emerge como a “ratio redenda” do “logon didonai“ dos gregos. Torna-se, por isso, a dominação do incondicionado que o mundo da técnica deixa transparecer nesse modo de alienação da jusiz que, não obstante, a “Grande Arte” ainda não deixou morrer.
No entanto, parece-nos indubitável que a complexidade dos problemas deste mundo nos desarma a cada momento. Por isso, urge que nos rearmemos intelectual e eticamente, de molde a que aprendamos a pensar autenticamente essa mesma complexidade. A perda do Futuro talvez seja um ganho, mas apenas se nos consciencializarmos de que estamos a percorrer uma aventura no desconhecido, no misterioso, no indifinivel. É necessário desenvolver a consciência da ambiguidade dos processos técnico-científicos, bem como a consciência da incerteza do nosso próprio destino. Numa palavra, é preciso desenvolver a racionalidade autocrítica no interior da razão universal.
Parece-nos, pois, que o progresso é possivel. Porém, não está garantido por nada nem em lado nenhum. Nenhum progresso, mesmo o já “garantido” é, absoluta e definitivamente adquirido. Como afirma Edgar Morin “O progresso é, de ora em diante, tanto mais valioso quanto não obdece a nenhuma nessecidade objectiva, e não dispõe de nenhuma garantia histórica. Também não devemos acreditar que o futuro está programado, nem devemos tentar programà-lo, mas sim orientarmo-nos em virtude de algumas ideias mestras, nomeadamente da trindade ideal da Revolução Francesa: ‘Liberdade‑Igualdade‑Fraternidade’. E podemos encarar o único grande objectivo: civilizar a Terra.”
O problema da nossa civilização, observado com assaz pertinência pelo sociólogo francês, encontramo-lo denotado justamente em Heidegger nesse seu retorno ao começo ou à inquietude originária de que Sófocles também nos fala. Aliás, “o conhecimento que possuimos do nosso tempo manifesta-se unicamente no prefixo sem forma ‘pós’ ou no prefixo negativo’anti’. E porque estamos na ambivalência profunda de uma era agónica, em que todos os sintomas de morte podem constituir ao mesmo tempo sintomas de nascer.”[10]
Ora, é desta problemática que releva da “Grande Arte” na sua origem, que Heidegger nos fala, quando nos apela para que dirijamos o nosso olhar e a nossa escuta para esse outro lado das coisas que a Arte nos mostra. Como afirma Hölderlin, na IVª parte da Migração (Die Wanderung): “Schwer verläbt Was nahe dem Ursprung wohnet, den Ort”, quer dizer, “Dificilmente o que habita perto da Origem abandona o Lugar”[11]
Notas:
[1] Tradução apresentada por Heidegger do texto “Sein und Denken” na p. 153
[2] Martin Heidegger, op. cit., p. 161.
[3] Martin Heidegger, op. cit., p.162.
[4] Ibidem.
[5] M. Heidegger, “Ser e Pensar”, in Introdução à Metafísica, p. 165.
[6] Edgar Morin, Ciência com Consciência, p. 50.
[7] Hölderlin, Poemas, pp. 406 - 407.
[8] M. Heidegger, “Zusatz”, in Holzwege, p. 72.
[9] Cf. Ibidem.
[10] Cf. Edgar Morin, “A Terra, astro errante”, in Diário de Lisboa, 22 de Fev/90, pp. 16-17.
[11] Cf. Martin Heidegger, Der Ursprung des Kunstwerkes, in Holzwege, p. 66.
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