quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Projecto de Dissertação de Mestrado, Parte IV, 1.


III º Questão
A origem da obra de arte e o problema da instauração da verdade


1. Algumas des-construções: do Estético ao Artístico e o primado do Ontológico

A questão da exaltação ou hipóstase da Origem, por nós analisada, não é senão uma outra face do “pessimismo cultural” professado por Heidegger, também marcado pelo tema da inautenticidade ou da teoria da alienação, pelo tema da violação da natureza e da decadência da linguagem. A Origem é aqui apresentada como tripla instauração (Stiftung):
a) A instauração da obra de arte é uma “origem” (Ursprung) não fundada, nem explicável ou deductível a partir dos entes pré-existentes, e neste sentido podemos considerá-la como um Dom (Schenkung);
b) A instauração é um começo germinal (Anfang) de uma época historial ou de uma humanidade histórica. Neste sentido é fundação (Gründen);
c) A instauração é um avanço (Sprung), situando-se para além de tudo o que cada época historial mantém como reserva.
Esta teoria triádica da instauração da origem não garante apenas uma espécie de permanência direccional do mesmo princípio em toda a época histórica que rege, mas ainda a sua visibilidade ou transparência desde o seu momento inicial.
Apesar de todas as des-contruções efectuadas por Heidegger aos princípios metafísicos que regem a criação e a apreciação da obra de Arte, cuja reunião se dá aquando da instituição da Estética como ciência que se dedica à reflexão sobre a Arte e sobre os artistas, a tese da instauração artística ‑ que não é senão a tese da instauração da verdade do Ser em obra como origem, dom e fundação ‑ apresenta, no autor, uma íntima ligação com esses princípios metafísicos. Numa longa passagem de Ukw, que vale a pena citar na integra, Heidegger é bem claro a este respeito: “O princípio contém sempre a plenitude inexplorada do abismo intranquilizante, isto é, do combate com o familiar.(...) Sempre que o ente na sua totalidade enquanto ele próprio requere a fundação na abertura, a arte atinge a sua essência histórica como instauração (Stiftung). Esta aconteceu no Ocidente pela primeira vez na Grécia. O que futuramente ‘Ser’ quer dizer foi posto em obra de modo decisivo. O ente, assim aberto na totalidade, foi então transformado em ente, no sentido do que foi criado por Deus. Isto aconteceu na Idade Média. Mas este ente, por seu turno, foi de novo transformado, no início do decurso dos Tempos Modernos. O ente tornou-se objecto calculável, susceptível de ser dominado e devassado. De cada vez, se abre um mundo novo, com a sua essência própria. De cada vez, a abertura do ente requere a sua instituição, pela constituição da verdade na estatura, no próprio ente. De cada vez a abertura do ente se produziu. Ela impõe-se (setzt) na obra; esta imposição (Setzen) é realizada (vollbringt) na Arte.”[2]
Esta passagem indica-nos que: o acontecimento da verdade na Arte realiza-se segundo as modalidades da historialidade metafísica da época que ela abre, pelo que a Arte deverá também participar sempre da Verstellung, quer dizer, na regulação específica de uma época metafísica determinada. Pela célebre interpretação desenvolvida por Heidegger do quadro de Van Gogh ,“Um Par de Sapatos”, verificamos, no entanto, que o quadro enuncia uma verdade que escapa ao horizonte da metafísica, em virtude de revelar apenas o “ser-produto do produto” na sua verdade, e esta verdade é não-metafísica.
Sabemos, no entanto, que todo o século XIX se regeu pelos princípios da metafísica moderna, qual etapa última do esquecimento do ser. Então, perguntamos nós, como é que o quadro de Van Gogh, pintor eleito como representante da “Grande Arte”, pode esquivar-se à lei de um tal esquecimento que marca precisamente a época em que emergiu? Parece-nos mais ou menos evidente que estas duas perspectivas, a da Verstellung metafísica e a da verdade artística, dificilmente podem ser consideradas conjuntamente. São dois caminhos não conciliáveis.
Heidegger parece utilizar a tese da hegemonia dos princípios metafísicos como uma arma contra todas as tendências ou empreendimentos que se dirigem contra o seu questionamento, entre os quais destacamos, por um lado, a ciência e, por outro, a teologia. A sua tese de uma verdade não‑metafísica revelada e des-velada pela obra de arte é colocada num momento anterior ao seu pensar específico sobre a Arte, embora os textos onde o autor desenvolve a variante da teoria especulativa da Arte não renunciem, propriamente, a primeira perspectiva que assinalámos. Nomeadamente quando Heidegger tece as suas análises sobre os poemas de Rilke, em particular sobre as Elegias de Duíno, o poeta modernista apresenta-se inserido na tese da determinação metafísica do dizer poético, embora se distinga o Rilke autor de proposições poéticas e o Rilke pensador do ser.
Esta ambiguidade conceptual é absolutamente afasta das interpretações movidas ao referido quadro de Van Gogh que, limitando-se a revelar a verdade do “ser-produto do produto”, não faz qualquer referência a qualquer determinação metafísica desta verdade que em si mesmo traz à luz, antes de mais porque o quadro limita-se a mostrar o que pensa o pensador do ser, ou seja, uma verdade que escapa completamente às determinações metafísicas.
Neste contexto, e como exemplo ainda mais autêntico da mostração da existência, na Arte, de uma verdade não-metafísica, basta recordarmos a posição que Hölderlin ocupa no pensar heideggeriano, que é incontestavelmente a mais relevante. Embora o empreendimento poético de Hölderlin, não um poeta modernista como Rilke, mas um poeta romântico, parta do idealismo absoluto seu contemporâneo, a obra tardia de que se ocupa o nosso filósofo constitui, em si mesma, um grandioso salto do horizonte metafísico para o universo da poihsiz, da Dichtung, ou seja, para o universo do Ser. Hölderlin é, pois o interlocutor privilegiado do nosso pensador, que pensa para além da metafísica a partir do seu fim, sempre através de um retorno às origens gregas tal como é frequente no “poeta do poeta”.
Ora, a determinação da Arte como origem absoluta, situa-se precisamente nesta perspectiva da instauração de uma verdade essencial, originária ‑ a verdade do ser ‑ que escapa à historialidade da metafísica. Porém, não esqueçamos que desde que a Arte é concebida unicamente como origem historial particular, quer dizer, origem de uma época dada, o seu estatuto torna-se, naturalmente, ambíguo. A Arte possui um papel privilegiado, uma vez que constitui um começo historial, ao qual, apesar de tudo, não se podem esquivar as interpretações do autor, que reiteram esta mesma ambiguidade quando afirma, a um tempo, a determinação da Arte como origem absoluta e da Arte como origem historial: “Sempre que a arte advém, quer dizer, quando há um princípio (Anfang), dá-se na História (geschichte) um choque (Stob): a História começa ou recomeça de novo. História não quer dizer aqui o desenrolar de quaisquer factos no tempo, por mais importantes que sejam. A História é o despontar de um povo para a sua tarefa (die Entrückung eines Volkes in sein Aufgegebenes), como inserção no que lhe está dado”[3].
Por isso é que a tese segundo a qual “Die Kunst ist das Ins-Werk-Setzen der Wahrheit”, quer dizer, “a Arte é o pôr-em-obra da verdade”, tese defendida inicialmente pelo filósofo (em regime de um carácter de exclusividade), encerra em si mesma a ocultação de uma ambiguidade essencial, em virtude da verdade não ser conceptualmente concebida de um modo linear: a verdade é, a um tempo, sujeito e objecto do pôr em obra. E como sujeito e objecto são termos inapropriados para nos referirmos a este pôr da verdade, a ambiguidade desta tese permanece inexplicável, dando de imediato lugar à formulação da tese que visiona a Arte na sua essencialidade histórica: “Die Kunst ist geschichtlich und ist als geschichtlich die schaffende Bewahrung der Wahrheit im Werk”, ou seja, “a verdade é histórica e, enquanto histórica, é salvaguarda (Bewahrung) criadora da verdade na obra”[4].
Mas o nascimento de um novo princípio metafísico também é um choque historial e, por isso, não nos é possível determinar um critério absoluto que nos garanta incondicionalmente que a Arte, na medida em que abre o Mundo de uma época determinada, escape, de facto, à Verbergung metafísica que caracteriza essa mesma época. No entanto, para Heidegger, é unicamente sob a forma de origem absoluta que a Arte é realmente Arte, ou seja, revelação não dissimulada do Ser. É segundo esta perspectiva que podemos entender as des-construções estéticas heideggerianas.


Notas:
[1] “A arte deixa emergir a verdade. Num único salto a Arte faz surgir na obra, enquanto salvaguarda, a verdade do ente. Fazer surgir qualquer coisa repentinamente conduz ao ser, a partir da proveniência essencial, no salto instaurador, eis o que para nós significa o termo Origem”.(Martin Heidegger, op. cit., pp. 65 - 66).
[2] Idem, pp. 64 - 65.
[3] Idem, p. 65.

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